MATANDO A COBRA E MOSTRANDO O PAU GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ****


MATANDO A COBRA E MOSTRANDO O PAU

GRAÇA FONTIS: PINTURA

Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA

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Pois é, né? Digo-lhe com todas as letras esfiapadas me sinto muito feliz, exultante de tanta felicidade, estou até pensando em sair doando felicidade a deus-dará,  e o diabo a matar a cobra sem piedade, comiseração, sem o menor consideração, pena e dó, que leve o resto, se sobrar algo, e o pior de tudo é que mostra-a na mão direita, o pau na esquerda, ele matou a serpente, mas isto na opinião de quase a humanidade  inteira diz que estava com toda a razão em matar a cobra, era libertina, vadia, desde quando trair o “O” com um capetinha sem qualquer jaça, mesmo que está no máximo os ficantes, uma traiçãozinha para satisfazer os instintos não pesa muito, estava com a razão, tinha mesmo que matá-la, não era preciso mostrar o pau, se dissesse ter sido ele quem matou, não haveria quem não cachaprasse o seu “sim”, pois que deste modo todos ganhariam no fritar dos ovos, iriam ser beneficiados, um lugar ao seu redor dele, inteiramente capachos, era a ressurreição do Hades, e claro, ninguém sabendo mesmo que paraíso do Hades é este, dizem por aí muchas cosilhas, mas ninguém volta para dizer que lugar de fogo demoníaco é este... Senão o que alimenta os caldeirões por toda a eternidade, que outro haveria?

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Pois é, né? Mas continuando sobre a felicidade que tenho sentido, digo-lhe que estou lendo Erasmo de Rotterdam, Elogio à Loucura, é esta a minha felicidade, veja bem o amigo, veja e guarde na memória, a qualquer momento pode querê-la e ter acesso a ela com maior facilidade. Começou esta tara pelo Erasmo com algo que escrevera neste livro.... Palavras de gênio da sátira universal. Escrevera “Se não tendes ninguém que o elogie, elogie-se a si mesmo“ Não há modo de  matar a cobra e não mostrar o pau... Não sou de forma alguma digno de que me elogiem, receber de alguém elogios, não mesmo,  mas não têm a menor dignidade de colocar sobre a mesa a razão, o  que enfim fizera, que pecado assim tão grave cometera, isto desde quando era garotinho, nasci no seio de animosidades irrefragáveis, chegaram a desejar a minha morte, comigo a digníssima porquinha torce o rabo ao reverso, mostro, identifico as razões, que neste encontro no shopping, tomando um chopp geladinho, mordiscando alguma coisa, trocando dedos de prosa, pouco importa. Não sabe como superei esta sombra, suprassumi-a, simplesmente começando elogiar a mim próprio, parece uma coisa sem gosto, insossa, falta de escrúpulos, modéstia,  desde quando sair por aí aliciando-se em todos os encontros, ver de frente os olhares de esguelha, os esgares faciais, isto não, com que objetivo pergunta-se de chofre, sem quaisquer, elogiar-me, aliciar-me, seduzir-me em todos os cantos e recantos, colocar-me no Olimpo, para quê isto?, pois é, né, aí é que a coisa entra em cena, a questão básica é a questão da troca de amenidades, a hipocrisia rolando fresca e viçosa por todos os sítios do mundo, e se houver outro fora esse, houver outro mundo, indo para fora do mundo, e todos indo alegres e saltitantes, isto é que vidinha, a hipocrisia universal, estamos neste século, o amigo há de endossar, fechar comigo, e todos com risos e sorrisos, desfilando por todos os lugares como grandes celebridades, recebendo apertos de mão à revelia. Não é este o sentido que a obra apresenta, de modo algum é, elogie-se a si mesmo, se for digno de sê-lo. Aí é que mato a cobra e mostro o pau. Digno de sê-lo, não o sou, por que negligenciar, quem não ficará bem na fita, sou eu. Se mostro o pau de minha atitude e ação, é que realmente mereço de mim elogio sim, sentir-me orgulhoso. Sem esta de mão vazia, mão cheia de realizações concretas, isto sim. E, sabe-o você, minha esposa e eu construímos os nossos destinos juntos, ela como doutora em Psicologia.  

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Vou dizer-lhe outra coisa que me chamou muita a atenção, foi quando Rotterdam dissera que não tem intenções nenhuma de ofender, humilhar, menosprezar ninguém, não cita nomes, quer apenas com o seu Elogio à Loucura fazer com que as pessoas se deliciem frente a si próprias na imagem do espelho, suas mazelas e chiliques bem expostos na superfície do espelho, a hipocrisia bem caracterizada. Pois  é, né!... É uma tara que sinto pelo Erasmo. Não significando que engulo, sem antes mastigar, isto não é de minha alçada, espremo os miolos para captar, intuir o que em verdade ele está dizendo, sabe você, amigo, bem que isto não é fácil, os equívocos podem acumular-se e nada mais haver que possa dissolvê-los, amenizá-los.

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- Garçom, por gentileza, mais dois chopps.

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Mas como estava dizendo, amigo, pois é, né. Dissera Erasmo que todos os homens, indivíduos, cidadãos, nações inteiras podem relaxar livremente das diversas fadigas da vida. Não há injustiça maior do que recusar esse direito ao que labuta com o espírito, sobretudo aquando as brincadeiras têm um fundo de seriedade, tem um fundozinho de seriedade... Isto dizendo ele sobre o seu tempo, como andava a hipocrisia, uma sátira do século XV e XVI. Aporte-se aqui no nosso século, século XXI, olhe, observe bem com os linces de seu olhar, por todos os lugares só a hipocrisia rolando. Você já pensou se Erasmo vivesse hoje, iria deliciar-se, escreveria outros opúsculos do Elogio, seria inda mais imortal que já o é, há hipocrisia até entre os piores vermes da boca de lobo de ruas, avenidas, alamedas, nos lixões; pois é, né, e vamos nós, vamos nós passando, apesar de todos os gritos, apelos, ruminâncias. Tagarelam, fofocam máximas, livros de autoajuda, discursam saídas do caos em que a humanidade inteira enchafurdou-se de cabeça no “ não só da cabeça, também do espírito”, que a hipocrisia deslavada é o caminho, sim, até concordo neste prisma de visão, é o caminho para a perdição dos prazeres reais, contentamentos, sentirem bem fundo merecerem o auto-elogio, sim, matei a cobra e aqui está o pau com que matei. Fico a imaginar se Erasmo vivesse neste tempo, teria muitos motivos para se auto elogiar, a hipocrisia está rolando....

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Mas dissera antes, e não conclui: verdade sim, palavras não matam a sede, a fome, por mais que saciem. Nós dois aqui, sentados na mesa de um salão de alimentação, conversando sobre a “hipocrisia” do mundo. Será que temos dignidade para nos elogiar. Porque somos professores universitários, temos títulos suntuosos, mas também nós, não somos ovelhas deste rebanho? São as tais coisas, como podemos nós mostrar o pau com que matamos a cobra da hipocrisia, da farsa, da falsidade, da aparência. Quem não sabe que é sim o século de tudo isto. Mas lhe digo algo que me está a ensinar o Erasmo: revitalizar as sombras e aproveitar a luz, isto não sendo de sua autoria, obviamente, lendo, absorvi este pensamento. Pois é, né, que luz é esta, perguntar-me-ia você, e mostro o pau com que matei esta cobra: só o tempo dirá, cumpre de minha parte a atitude, a ação.

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- Zé Aristeu, um prazer imenso trocar idéias com você, temos que nos encontrar mais vezes, trocarmos alguns dedos de prosa. Tenho de preparar uma aula sobre A Religião nos Limites da Simples Razão, de Kant.

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_Pois é, né, Modesto Lima, temos de encontrar mais vezes num sábado como este noutro lugar diferente, lugares é que não faltam nesta Cidade Maravilhosa, apesar de que o caos social daqui  perdeu as estribeiras, e não há quem fareje saídas, o faro anda mal nestes tempos, está difícil inalar este ar,  pelo menos amenizar a conjuntura em que estamos vivendo.

 

- Tchau, tchau...

 

- Tchau, tchau...

Rio de Janeiro(RJ), 26 de maio de 2021, 20:25 p.m.          

 

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