#NÃO FLOR NEM LILÁS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA ***
Para
tirar o retrato do instante, assim o penso agora após alguns dias da situação
em que estivera envolvido, e que deixara seus traços e passos, mantive o rosto
isento, como se o fotógrafo houvesse pedido um rosto e não a alma, esta não
interessava por interferir nos traços e perspectivas do espontâneo – seria
mesmo este o termo, não o sei, não me é dado saber acerca da arte da
fotografia, a sua nomenclatura específica.
***
Abri a
boca, inerente à vontade, a cara tomou por segundos a expressão de desprendimento
cômico – a intenção talvez fosse a de esconder os sentimentos que me habitavam,
sabia de sofrimentos e dores atrozes, e não poderia permitir fossem aflorados –
que usara para esconder a gafe – talvez devesse dizer “vexame”, quando ouvira
as palavras humilhantes e ofensivas.
***
No
momento seguinte, desviei os olhos com vergonha pelo despudor de apresentar um
rosto cômico, onde não havia graça quis criá-la para não me entregar de corpo e
alma ao destrate a que passara, fora obrigado a passar, embora não houvesse
para tal qualquer motivo ou razão.
***
A tensão
caiu. Sentei-me à mesa, pus-me a olhar indiferente e alheio a tudo o que estava
acontecendo, quando alguém perguntara se estava pensando em minha senhora,
estivesse com saudade dela. Dissera que sim. Estava pensando sim nela; havia
três dias que estava fora. Isto acontece estando fora, aliás costumo ligar para
desejar boa noite, dormir com Deus.
***
Os traços
do rosto, os que sobraram após ouvir as palavras humilhantes e ofensivas,
cederam a uma grande “lombeira”, como se costuma dizer após minutos
consecutivos de grande tensão, relaxando-me.
***
Desconfiado
de haver alguém quem de soslaio olhava-me, percebendo claramente que me debatia
com muitas dores e sofrimentos, misturados com sentimentos de mágoa e
ressentimento, como quem fosse enfim terminar por dar uma gargalhada ao
constatar o absurdo, não havia qualquer motivo ou razão para me sentir
humilhado, ofendido com tais palavras, teimei, no entanto, em manter o rosto
enviesado, de onde olhava de esguelha quem houvera dito as palavras. E de onde
começava a não poder me impedir de ver-lhe sentado com as mãos cruzadas no
colo, com a serenidade de com quem nada houvera acontecido, nada dissera.
***
No olhar
castanho e ingênuo – creio que o termo adequado seria “inocente”, mas preferi
ingênuo quem sabe por desejar não me confessar abertamente, não dizer que no
fundo o embaraço vaidoso de não haver replicado, dito também o que me passara
na alma como resposta, mas que decidi não o fazer. Havia qualquer coisa muito
esquisita e estranha na atitude de nada replicar, de permanecer calado.
***
Não podia
impedir a derradeira piedade que tomara conta de mim por inteiro, a piedade
estava nos meus olhos que o observava de soslaio. Não pude impedir a piedade
sentida, entregando-me com alívio à comiseração que com esforço conseguira
guardar no peito.
***
Tantos
sentimentos desencontrados, emoções confusas atravessavam-me de um lugar ao
outro, e outra coisa não poderia ser feito senão responder à ofensa e
humilhação, de modo que não fosse jamais esquecida, mesmo que trancafiada a
sete chaves nalgum baú íntimo. Como iria responder? Não havia qualquer modo
senão que tomasse de um pedaço de papel qualquer, escrevendo um bilhete bem
apimentado. Não havia caneta, não havia papel. Estava mesmo condenado a levar
para casa um desaforo, um desplante sem eira nem beira.
***
Não havia
qualquer outra alternativa senão despedir-me de algumas pessoas com quem me
encontrava sentado a uma mesa, indo embora. E jamais recebera qualquer desaforo
que não houvesse replicado, correndo risco de levar um tiro ou um murro pelas
fuças sem dó e nem piedade. Dissera por inúmeras vezes que, recebendo alguma
humilhação, não levaria para casa, e se não houvesse possibilidade de replicar,
não voltaria para casa, dormiria na rua.
**&*
Era uma
noite fria e escura, mais que outras. A branca nebulosidade deixava o fim da
rua invisível. Tudo estava algodoado – esta a única imagem possível que
encontrei para dizer a respeito, para descrever, se assim posso dizer, não
estando enganado, não estando a me utilizar de um lugar-comum – não se ouvia o
ruído de alguns passos subindo a rua. Andava para o imprevisível da rua.
***
No ar
escuro, mais que no céu, no meio da rua uma estrela.
Não, não
estava sozinho. Se me perguntassem dali até à eternidade, apesar de esta idéia
por inteira idiota, sabemos e não sabemos para onde estamos indo, o que sobrará
de nós, ninguém o sabe, mas decidi com as letras romper as fronteiras da
existência, tornar-me uma idéia, postura, decisão, responsabilidade e ética a
partir disto a que ninguém até então não dera valor, não acreditara ser
possível tornar a vida as letras até que um dia os ossos, que nunca emagrecem,
com certeza, sejam as sílabas, frases, pensamentos, idéias, e, além de tudo a
certeza e a convicção de que era por isto que sempre sonhara tanto.
***
Mas por
que aconteciam determinadas situações e circunstâncias, apesar de todas as
questões éticas e morais haver instante em que é preciso romper com elas,
entregar-me ao nada, traços e passos com enormes dificuldades de
relacionamento, o que não é agradável, a humanidade sempre o soube, quem sou eu
para mais saber que ela que sobrevive a todos os instantes, renasce de suas
próprias cinzas, e o único modo de romper com estes limites é mostrar a real
postura que se me afigura no momento, embora as imaginações, erros, enganos,
mas por uma questão de dignidade e honra, tendo com que mostrar como estão
sendo construídas.
***
O que
restaria fazer quando a madrugada passasse, renascesse um novo dia,
perguntava-me a todo instante, talvez fosse necessária a saída de imediato,
deixar o tempo ir se refazendo. Sim. Não havia dúvida de que deveria pela
manhã, no mais tardar à tarde por volta das cinco, tomar o ônibus de volta ao
lugar onde de um modo ou de outro estou construindo o que sempre acreditei ser
a salvação, e, se não fosse, ao menos iria servir de questionamento acerca do
sentido da Vida, o de viver é muito simples, suficiente a decisão radical e
consciente de que é isto que redimirá a mim mesmo de todos os enganos e erros
durante a vida, mas é isto que mais pode causar felicidade a um artista, a um
escritor, isto de estar buscando os caminhos do campo por onde outros homens podem
tranqüilamente passar, sem medo ou hesitações.
***
Ah, sim,
esqueceu-me uma última palavra: alguém dissera: “O abismo é seu. Terá fim
quando decidir que sim. Aí, poderá retornar à superfície, começar um novo rumo
de vida e de princípios”. Não é que apostei tudo nisto aí de terá um fim quando
decidir que sim, mas quem diria que não estou nem um pouco interessado em
voltar à superfície, quem sabe não tenha sentido na carne e no espírito,
tornando verbo, a entrega à humanidade, e não é que Deus colocou o homem no
mundo exatamente para servir aos outros, mas nos deixou a liberdade de decidir
os caminhos das relações, com ou sem respostas agressivas, ignorantes.
#RIO DE
JANEIRO(RJ), 12 DE JUNHO DE 2020, 18:35 p.m.#
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