NO BURACO DA GIRULIKA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA ***
Quando
tenho algum tempo na redação – o trabalho e as responsabilidades são imensos;
visto sofrer de uma doença incurável chamada pelos grandes psicólogos de “neurose
de perfeição”, não aceito qualquer deslize, não admito erros e enganos nas
minhas opiniões, na minha consciência, tudo tem que sair como manda o figurino
-, sou eu quem vai ao açougue para Girulika. É impressionante como os
açougueiros passam a pobre para trás. Pede uma qualidade de carne, é servida de
outra. Os dentes é que sofrem com a mastigação.
***
Algumas
vezes eu quis ir ao açougue reclamar, mas ela não deixou, não criasse confusão
só porque o açougueiro serviu chã de fora, quando fora pedido chã de dentro, um
quilo de carne acaba logo. Ela não entende que se vamos permitindo as coisas
acontecerem, sem qualquer insatisfação, resultando em reclamação, damos asas às
coisas permanecerem do mesmo jeito, a cada dia piorando mais e mais. Assim, jamais
haverá mudanças. Prefere ser tripudiada, engabelada do que exigir seus
direitos.
***
Não digo
apenas neste buraco de mundo, mas em todos os outros, as pessoas têm medos
indescritíveis de fazerem inimigos, além de terminarem os dias de vida
sozinhas, não vão conseguir coisa alguma na vida, na hora das grandes e
urgentes necessidades não encontrarão mãos que lhes estendem e as tirem das
dificuldades. Todos aproveitam disso. Quem não aprecia os oportunismos? Tudo é
permitido, para sempre imperarão as condutas e atitudes de não.
***
Vivi na
capital por oito anos. Levei uns três até me adaptar à realidade. Ninguém
conhece ninguém. Ninguém convive com ninguém. Aprendi a duras penas a conviver
comigo mesmo, só contar com as minhas capacidades. Não existe isto de “estou na
pior”, alguém vai me ajudar. O que se tem de dizer a alguém, diz-se logo e com
todas as palavras para não haverem dúvidas ou desconfianças. Não se vai mais
encontrar com a pessoa.
***
Para mim,
pouco me importa um inimigo a mais só porque lhe disse o que penso e sinto
sobre as suas atitudes, sobre as suas falcatruas. Digo, assunto encerrado.
Sempre fora homem direto e franco, tendo vivido na capital solidifiquei a
franqueza. Dizem alguns amigos que, querendo ser gentil, sou bastante, mas
querendo ser grosso, sou um verdadeiro cavalo de ferradura e tudo o mais.
Girulika não entende estas coisas, chama-me a atenção sempre quando rasgo os
verbos na “lata” de alguém.
***
Dia
desses, um pouco incomodado com o fato de não estar podendo escrever as minhas
crônicas nos botequins, enquanto tomo a minha cerveja, haver quem se aproxima e
começa a perguntar isto e aquilo, comentar sobre esta ou aquela crônica, não
sou grosso, dou a atenção devida aos leitores, uso de minha finesse, além de
dizer respeito ao carinho e amizade que sinto por eles, é lhes agradecer o
renome que desfruto, renome que foram eles a me legarem com o mesmo carinho e
amizade, fui para a periferia, num botequim copo-sujo.
***
Dizem
alguns que os artistas são conhecidos por todos, os artistas só conhecem
alguns. É e não é verdade. Haverá alguém que não conheça. Não iria adiantar
andar tanto para poder escrever sossegado. O tempo circula por toda a cidade.
Mesmo assim ousei fazê-lo. Olhei as pessoas, nunca as tinha visto mais gordas
ou mais magras. Não me pareceu que me conhecessem. Sentei-me, pedi uma
branquinha, cerveja, tirei a agenda de dentro da pasta, abri-a numa página em
branco, comecei a escrever. As pessoas ficaram me observando. Não fosse alguém
que me conhecia chegar, ficaria lá o quanto me aprouvesse, não seria
incomodado.
***
A pessoa
se aproximou.
***
- Tudo
bem? – cumprimentou-me seriamente; senti logo que estava insatisfeito comigo,
visto o tom de sua voz.
***
- Tudo
bem. Obrigado.
***
- Então,
que negócio é este de em suas crônicas no jornal chamar a nossa cidade de
“buraco de mundo”. Mais respeito, sujeitinho? Se não gosta daqui, vai embora, e
não volte mais.
Prestei
atenção em todas as suas palavras. A pessoa estava bem nervosa, qualquer
palavra minha fora do lugar era motivo de dar-me um murro nas fuças. Naquele
lugar, teria o apoio de todos os fregueses. Seria espancado. Manter o senso era
necessário, ficar calmo e tranquilo mais ainda.
***
- Verdade
sim. Em minhas crônicas digo isso. Há crônica intitulada No Buraco da Girulika,
Girulika é minha esposa, digo-lhe com franqueza, é de uma inteligência sem
limites para dizer asnadas. Não sendo daqui deste lugar, as origens são do
sertão, ela que nascera aqui, obviamente estou no buraco dela.
***
- Não tem
medo de apanhar não?
***
- Nunca
estive nesta situação de apanhar por isto, noutra situação qualquer já fora
ameaçado.
***
- Sempre
tem a primeira vez – olhei ao redor e todos prestavam atenção. Enfiei-me numa
fria. Não devia ter ido naquele botequim. Girulika já tinha me avisado que
escrevesse minhas crônicas ou na redação ou em casa, nunca em botequins, se me
sentia incomodado com as interferências dos leitores.
***
- Senhor,
dê-me licença de lhe perguntar uma coisa?
***
- Que
coisa? – fechou a mão direita.
***
- Onde
esta cidade foi construída? A menos que esteja ensandecido, está construída no
abismo, num buraco do abismo. Ao contrário de estar criticando, como o senhor
está insinuando, estou-lhe reconhecendo, enaltecendo-lhe os méritos, a sua
verdadeira origem - o cinismo estava evidente, mas não percebeu.
***
- Verdade
sim.
***
- Então?
***
Alguém
dos fregueses interrompeu:
- Aqui,
meu camarada, dirigindo-se à pessoa que me havia interrompido a escrita para me
repreender, se você pega táxi, só paga para subir, o motorista só desce na
banguela. Nossa cidade está no fundo do buraco.
***
Dei
graças a Deus à interferência do freguês.
***
-
Desculpe-me se fui grosso com o senhor. Não havia pensado nisto de a cidade
estar construída no abismo. Desculpe-me mesmo. Pode voltar a escrever as suas
crônicas.
***
Dirigiu-se
ao balcão um tanto vexado, olhando para os fregueses, pediu uma pinga, tomou-a
de um fôlego só. Pediu-me desculpas mais uma vez, foi embora. Não demorei muito
mais. Tomei a cerveja às pressas, escrevi uns dois parágrafos, paguei,
despedi-me de todos gentilmente, fui embora. Ficaria no centro mesmo, não mais
iria parar nalgum botequim copo-sujo da periferia, é muito perigoso. Se não
houvesse tido presença de espírito, respondendo-lhe como o fiz, poderia ter
levado um tiro, observei algo debaixo de sua camisa, na cintura, pelo volume
pareceu-me um revólver. Jamais vou deixar de escrever em botequins, com
interferências ou não dos leitores, nunca mais na periferia. Aprendi com a
experiência.
***
Fosse
nalgum botequim do centro, mandaria a pessoa catar coquinho no asfalto.
Girulika não entende que a franqueza tem seu tempo e lugar devido. Não ando
dando coices a deus-dará sem olhar ao redor, seria idiotice minha. Mas não nego
que no íntimo estive para mandar a pessoa àquele lugar com todos os direitos de
refestelar-se nas chamas mais vivas. A ameaça de morrer e ser eu quem iria para
lá fez-me calar os ímpetos.
#RIO DE
JANEIRO(RJ), 15 DE JUNHO DE 2020, 10:00 a.m.#
Comentários
Postar um comentário