ORATÓRIA DA VARA CURTA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA
A vara de
que disponho é curta. Não vou cutucar onça ou cobra, não existe a necessidade
de ser longa. De que tamanho? Maior que a régua tradicional, creio de 30
centímetros, uns trinta e cinco a quarenta centímetros? Vara de bambu? Vara de
quê? De bambu. Trago-a em mão para uma eventualidade, quem sabe não encontre
cobrinhas no caminho, com a vara curta arremesso-as longe no serrado. Senão
assim, não me utilizarei dela. Torna-se, então, hábito de ter a vara na mão.
No métier
literário, costuma-se dizer com toda a categoria e empáfia que se possa
imaginar ou um dia idealizar: “com as palavras, use sempre a vara bem grande,
elas são ágeis, nunca se sabe os seus subterfúgios. Caso desconheça isso,
sentirá o que é ver o ácido crítico destilar noutras ocasiões e circunstâncias
das criações, re-criações”.
A
curiosidade, diz o ditado popular, mata o gato. O celular estava sobre a mesa
do computador. Abri-o e liguei nas Imagens, a primeira foto era de vara outra
que, se cutucada, proporcionará prazeres inomináveis, conforme as “querências”
mútuas resultam em relação conjugal, de amantes, não importam os clichês
sociais, mas o proprietário dele era homem.
Mesmo sendo
homossexual, a intimidade nas Imagens de celular de-monstra que não a a-colhe
íntima, mesmo que ninguém resolva fazer o mesmo que eu. Para quê? Chamar
atenção? Mostrar suas preferências libidinais, libidinosas, cada um decida por
conta própria qual destes termos caí bem. Fechei o celular de imediato. Nada
dissera ao seu proprietário, embora houvesse sabido de minha atitude.
Conversamos
– se aqui não há a divisão com hífen, “con-versamos”, é que não teria condições
de mergulhar no espírito da coisa, na coisa do espírito, a sua vara de
entendimento e compreensão não é curta, simplesmente não existe, não sou quem
aprecie isto de varar a curiosidade dos desejos e vontades, de contemplar o
ridículo das atitudes e as atitudes ridículas com os gestos.
Se o faço
comigo, não varo apenas isto, varo as mazelas e pitis que me acompanham desde
os primórdios da humanidade, não há bisturi ou laser que se lhes arranquem,
arremessando-lhes aos “lobos da estepe”, lembrando-me vagamente de Hesse.
Podendo assim andar pelo serrado com a vara na mão, o espírito distante,
desejando-me no deserto, quem pensa pequeno é idiota, o charme é pensar grande,
no deserto do Saara, sol de cozinhar os miolos com a vara em riste,
indicando-me o caminho do horizonte sem fim.
Muito
embora, reconheço, a ambigüidade e dubiedade de sentidos, insinuações, pouco
isto se me dá, pois que a intenção é varar os sentidos múltiplos que a palavra
me oferece, como me oferecem os meios, subterfúgios de sentir as impressões
di-versas do real, ad-versas da imagem.
Varo as
notícias dadas em jornais e pasquins. Verdade inconteste de um amigo mui
íntimo, quem me dissera em tenra infância: “As coisas valem pelas idéias que
sugerem”. A vara vale pelas ambigüidades que sugerem, suscitam, insinuam, numa
linguagem mais que chinfrim, dão a entender, mas os tempos anda mui modernos, e
quem profeta for e souber delineá-las com perspicácia e sabedoria, em línguas e
linhas, na avidez dos sarcasmos, na alvura das páginas de um sonho, sentir-se-á
ofuscado, e tudo o mais será uma busca eterna de poder outra vez viver este
momento, nada mais. Perdeu-se na neblina de entre serras numa manhã de
in-verno. Perdeu-se nos ventos contrários das montanhas longínquas e distantes.
Em verdade,
enquanto varo estas notícias, digiro o estômago, enquanto o cérebro vai
remoendo, certo é que as mazelas e pitis se resolvem na mastigação. Não olho
para a vara com a mesma satisfação com que olho os caminhos da terra, a minha
bota, luzindo, após a tinta líquida, alguns instantes aos raios do sol exposta,
a escova para lá e cá. “A bota...”, continuava o amigo íntimo a dizer-me no
banco de mármore no alpendre de minha residência, certo é que algumas pessoas
diziam-me que residia numa floresta no centro da cidade, outras, num Paraíso no
coração do sertão, verdade, muito arborizado: “... é a metade da circunspecção;
em todo caso é a imagem que se pro-jeta no luzir da bota”, creio que re-crio a
fala do amigo, por não conseguir lembrar-me com eficiência dos ipsis litteris
de suas palavras, contudo, penso haverem sido: “... é a base da sociedade
civil”. A vara, considerando serem as palavras que completavam a idéia da bota,
é o alicerce dos hábitos ridículos, deste meu hábito de ter a vara na mão.
Varo a
preguiça que amamenta os ócios muitos, a virtude de minguar força e agilidade
às línguas de cobras que num simples toque de vara curta o veneno que as portas
do céu e do inferno são abertas é cuspido com propriedade, e que eficiência –
jamais ouvi dizer que abrisse as do purgatório. Não passo o par de botas à
frente do sapateiro, não passo a vara à frente da natureza, refiro-me a de
bambu, se houver outra, debito-a às custas do olvidamento, ando no serrado,
inteligível isto acontecer.
Varo os
temas nucleares da indecisão, dúvida, idéia fixa de perfeição – já acordei com
idéia fixa de registrar na “nivealidade” das linhas uma anedota -, loucura. Como
pêndulo, que se verifica no deslizar dos minutos e segundos, o que importa a
in-versão?, quase nada, senão o nada absoluto, assim creio e junto os pés em
sinal de consciência e não apenas de opinião, ponto de vista, o espírito oscila
entre o real das ad-versas impressões e as impressões que a vara na mão traz em
sua algibeira, guarda em segredo de 666 chaves.
A dúvida de
qual impressão re-colher e a-colher na alma sedenta de con-templação, com a
vara na mão, de vislumbre do real visto à luz das impressões reais dos sonhos
ad-versos, in-versos, re-versos, liames das virtudes e con-(s)-ciência do
mundo, objetos, coisas, e homens que olham o umbigo sob a luz da estrela que
guiou Maria e José, e o jegue que lhes serviu na caminhada, com o espírito das palavras
nos dedos que digitam, e nada lhes identifica as origens e raízes. Digita-se no
vazio, no abismo... Não se sabe a agilidade dos dedos, os olhos fixos na tela.
A fantasia e
a utopia – quiçá a quimera dos idílios – entrelaçaram as mãos e olhavam para
mim, o que me deixara circunspecto, pois não soube distinguir, discernir se era
indagação, por alguma atitude desconhecida, parecerem-me sobremodo sérias, se
lhes faltaram as palavras para me dirigir, observei ansiedade. Se fizesse um
gesto com a vara, talvez as palavras viessem. Talvez por estar ainda pensando,
refletindo, meditando, elucubrando a respeito da vara que sempre trago na mão
bem segura, não sem carinho e afeição, ternura e meiguice, por me seguir há
tantos anos, indicando-me por onde varar os desejos e vontade, esperanças e fé,
em que dar varadas ao longo da caminhada.
Eu, como que
enlevado, olhava para ambas, esperando o que fosse advir, em que estaria eu
metido, envolvido. Durou isto alguns segundos; quis fazer algumas perguntas,
dentre elas o que sucedia para olhares tão fixo, acaso houvera algum problema,
mas quando ia falar reparei que as duas se haviam tornado mais delgadas e
vaporosas. Articulei alguma coisa, embora me seja aqui difícil identificar;
porém, vendo que elas iam ficando cada vez mais transparentes, e
distinguindo-se-lhes as feições, soltei estas palavras numa linguada só:
- Então, que
é isto? por que se desfazem assim? – mais e mais as sombras desapareciam, corri
à sala das obras publicadas; espetáculo idêntico me esperava; era pavoroso;
todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e
palpitante, percorri algumas outras salas e, afinal saí à praça, estava havendo
uma feira de artesanato, um show com um cantor de nossa comunidade, tudo estava
sofrendo a mesma transformação. Não havia tomado nada, não sou de drogas.
Alguma coisa errada estava acontecendo comigo.
Dei com a
minha vara nalgum lugar indevido? Não sei se de fato pensara isto, se esta
indagação se me a-nunciou, sei que me faria esta pergunta numa situação desta.
Só dando com a vara nalgum lugar indevido que acontece estas coisas, o toque
mágico, daí em diante tudo são fantasias e utopias, quimeras, elucubrações, e
depois de tudo a mágica termina e a realidade nua e crua continua a sua
trajetória. Envolvi-me de vara tanta que acabei sem vara alguma para me
auxiliar na realidade daquele evento cultural.
Ensandecia?
Enlouquecia? Perdia os juízos? Meu Deus, em que me metera? As indagações,
perquirições esvaeceram-se todas, nada me sobrara na cachola.
Nesta
situação, não pude conter-me, soltei um grito de dor, não sei se alguém ouvira,
parece-me que não, não vi ninguém olhar-me de soslaio, não vi ninguém rindo,
girando o dedo indicador da mão direita próximo à fronte, em sinal de ser mais
um louco. Quê situação! Valha-me Deus! Fechei os olhos e deixei-me ir como se
tivesse de encontrar por termo de viagem a morte. Era, em verdade, não sei se
diga o mais plausível ou o mais provável. Distinguir entre a plausibilidade ou
probabilidade nestas circunstâncias é fugir à verossimilhança, é escapar da
realidade, é procurar abrigo e proteção no ilusório.
Passados
alguns segundos, andando no meio da multidão naquela sexta-feira na Praça da
Cultura, abri os olhos e vi que caía perpendicularmente sobre um ponto negro
que me parecia do tamanho de um ovo de galinha garnisé. A minha queda tinha
alguma coisa de diabólica, não apenas patética, soltava de vez em quando um
gemido, e, em contrapartida, ouvia rumores e sussurros. O corpo era-me rasgado
como um raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu e cresceu até fazer-se do
tamanho de uma grande espera. O ar, batendo-me nos olhos, obrigava-me a
fechá-los.
Vênus, mais
pálida e loura que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a
sua beleza. Há beleza mais pura e singela do que a de Vênus? Confesso que
jamais me será dado saber de outra, nem Vésper. Lancei um olhar de ad-miração
para a deusa da manhã. Os planetas passavam à minha ilharga como se fossem
corcéis desenfreados – não sei se me lembrara ou se alguém ativara-me a
memória, alguém que passava por mim, certo é que pensei em Lúcio Cardoso, quem,
se me não engano, era chamado “corcel de fogo”.
Antes que
chegue o suspirado dia em que penas e perdizes se comunguem, o desejo da beleza
da forma e do estilo se real-izem, e descanse eu os movimentos da mão a
delinear letras, burilar palavras, pouso os olhos nas serras distantes,
vislumbro as vagas do infinito, as perdidas nuvens brancas. Declamo orações que
eternamente louvam a fé não do encontro, mas do eterno desejo da sublimidade.
Realizar a
rima que suspiro, o resto é mistério ignoto, às turbas, fascínio doce vivencial
e vivenciário, o verso e rima verdadeiros levam no seio sedento de beleza a
virgindade da poesia e fé, que, voltando à alma de sofrimentos e dores...
Entre os
rios sem margens,
Contempl-orando
os contrários ventos
- seculares
e milenares –
E ao som de
novos cânticos
Deixo as
perdizes livres para a ventura
- da raça –
Os idílios
da espécie
Entre os
rios sem margens,
Ao sol e às
brisas tépidas respira a terra
Viçam de
novo os alvores, a grama serena e suave
Com o
orvalho da noite,
Brota de
novo as flores do Lácio,
As últimas
dos cânticos
- de glória
e triunfo -
Senti
expandir-se-me a alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? Fosse, tudo o que
elucubrei dele no passado não passava de mera fantasia, utopia, quimera. Não
ousava perguntar, e mudo esperava o termo da viagem. Dei com a minha vara
nalgum lugar que não devia, iniciou-se alguma viagem, por onde não tinha a
mínima noção, para onde não tinha a mínima condição de saber.
Dizer que
tudo começara quando terminara um evento de aniversário de um suplemento
literário, a que compareci de gaiato, e, ouvindo uma cantora lírica executar a
peça Ave-Maria, perdi-me por inteiro, a fantasia e utopia tomaram-me por mim;
antes de sair do salão nobre, não sei dizer se a personalidade maior do evento,
se um leitor fanático por suas letras e idéias, dissera-me: “Espero que nosso
encontro tenha lhe despertado para o sublime”.
Caminhando,
os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas
reais. Pude ver então que me achava em uma nova terra, a todos os respeitos
estranha.
As Utopias e
Quimeras foram festejadas pela personalidade, pelos amigos e íntimos, pelos
leitores e ad-miradores, que se dignaram a bater-lhes na face como atitude de
amizade e reconhecimento. Elas, Utopias e Quimeras, alegres e risonhas,
receberam os carinhos reais como coisa que lhes eram devidas.
Era uma
necessidade da vida eterna – a personalidade maior daquele evento havia-me dito
esperava haver-me despertado para o sublime. Por que houvera dito aquilo não
tenho qualquer modo de sabê-lo? Se havia percebido algo em mim que identificava
andava eu às antemãos do sublime, e tudo o que eu desejava era isto? Também não
saberia dizer. A vara estava na mão, carrego a vara na mão por todos os cantos,
só não durmo com a vara no peito, fica no criado mudo. A idéia de ficar doido um
dia. Imaginem os amigos íntimos: um doido eterno, imortal. A comoção que esta
idéia me dava foi tal que quase enlouqueci ali mesmo, ouvindo as palavras da
personalidade. Sem essa idéia cairia na demência absoluta e divina, muitas
vezes o que é absoluto não é divino, vice-versa. Não parece esquisito? Haja
esquisitice para res-ponder a este questionamento. Esquisitice seria uma das
maiores virtudes, por exemplo, a fidelidade conjugal.
Esquisitice
é estar me lembrando de toda esta situação vivida, experienciada, vivenciada,
hoje, logo após acordar-me, sem ter qualquer explicação plausível ou razoável,
senão o questionamento que me fizera a personalidade das letras.
Ainda sob os
efeitos da fala da personalidade, encaminhei-me ao hotel, ou fui encaminhado,
não saberia dizer, com a vara na mão, havia-a trocado de mão, estava na
esquerda, apanhei as malas, chamei um táxi, tive de esperar longo tempo o
ônibus chegar, o que me ajudara a colocar a vara no lugar, ou melhor, entender
o que realmente tinha acontecido comigo, voltando ao normal. Retornei à casa.
Naquela cidade estava a passeio.
#riodejaneiro#,
08 de junho de 2019#
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