ATENAS ATÉIA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
A água que
desce a serra, seguindo o seu destino, está sobremodo calma; ouço-a em nível do
espírito.
O olhar
desliza na vidraça da janela, a fim de mais perceber o rio, a água que desce a
serra, até o lugar onde deixa de ser límpida e transparente para ser um esgoto
a céu aberto; não importa que o rio se tenha tornado esgoto, se continua
límpido e transparente, o que é mesmo fundamental é cuidar da parte de cima da
cidade: ela é que é o deleite dos turistas do mundo inteiro.
Está frio –
o inverno chegou mais cedo devido às chuvas constantes durante o primeiro
semestre deste ano. Irá fazer muito mais frio do início de julho até o segunda
quinzena de agosto.
Aqui nesta
cidade é assim: a água, o ar e as pedras não deixam de se misturar ou de se
interverter, de trocar as naturezas ou os lugares naturais, de jogar aos quatro
cantinhos ou aos brinquedos de esconde-esconde; brinquedos envelhecidos a que
falta inocência, ingenuidade: explicável por ser uma cidade velha, os costumes
e hábitos foram vez por todas trancafiados no passado, isto é fundamental para
a conservação dos bons princípios; os desejos e sonhos foram esquecidos em nome
da preservação da segurança e do conforto.
De minha
janela, desviando o olhar do rio para as ruas calçadas de pedras, onde os
humanos pisam e repisam indo a todos os lugares a passeio, a negócio, aos
encontros com amigos, dedos de prosa sobre isto e aquilo, não se veem os jovens
perambulando, rindo, divertindo, contando as suas aventuras, e sim velhos que
vivem de suas memórias e lembranças, de suas alegrias e frustrações.
Aos turistas
inexperientes, que se deliciam com a arquitetura secular, prédios e casas de
estilo barroco, as manifestações artísticas, este composto instável reserva
muitas surpresas: enquanto põem o nariz no ar para ver o tempo que está, se
nublado, no alto da serra a neblina, devido à chuva que caíra por alguns dias,
três ou quatro, às vezes menos, um ou dois, se frio, sendo a fisionomia da
cidade, se calor, talvez que aos seus pés todo o sistema celeste, com os seus
meteoros e as nuvens, se resuma numa serpentina de prata.
Esta manhã,
as preciosas arquiteturas – não há turistas que se esqueçam de fotografá-las,
uma lembrança inestimável e incomparável da beleza, do charme – que eu jamais
levei a sério, parecem-me de uma temível austeridade: são as fachadas das casas
e das igrejas de um mundo humano que se afasta, que se enovela no passado, e no
presente nada de nada ofusca a visão.
Pequeno
mundo limitado – a história cultural e artística que fora sendo construída ao
longo dos séculos, e o nada presente que se vai construindo a partir dos
interesses e ideologias variados, - fechado em si mesmo, que se ergue
definitivo como um pensamento no meio do deserto.
O abismo é a
terra inteira, redonda e carregada de velhos, velhice, memórias e lembranças
não esquecidas, que são a pedra angular da conservação e preservação da vida,
do medo e do temor de tudo soçobrar, de nada restar senão as pedras inertes nas
calçadas das ruas. O abismo afasta-se e eu fico à janela observando.
Atenas é
angustiante. A humanidade afasta-se deslizando nas águas que descem da serra,
seguindo o seu destino. A espécie humana – ou, quem sabe o processo histórico –
reduz-se, pequeno pulsar limitado no espaço e no tempo. Vejo-a inteira de um
qualquer lugar situado fora do espaço e do tempo e sinto muito perfidamente o
meu abandono.
Desde o
momento em que a luz da manhã envolve esta imperceptível distância abismal,
este desajeitamento constante, essa luz parece transformar-se em nada; desperta
ou apaga os sentidos espalhados pelas casas que se amontoam nos morros e
serras. No fundo de um olhar antigo, o meu olhar busca recuperar a areia
cobrindo as pedras das ruas, mas apenas traz banalidades.
A
arquitetura barroca, os velhos e a velhice dão a Atenas um muito rápido e
ligeiro fundo de angústia, depressão, medo: porque é neles que as coisas traem,
que o revólver apontado contra o assassino louco não dispara, que se foge
perseguido por um inimigo mortal e que de repente a rua se funde quando a
queremos atravessar.
O presente é
o que toco, o utensílio que posso manejar, é o que age sobre mim ou que posso
modificar. Estas encantadoras quimeras, que tanto deliciam os turistas que aqui
vêm para desfrutar do passado, do processo histórico que fora sendo construído,
ao longo dos séculos, e que deixara seus passos e traços, não são o meu
presente. Não pertencem à minha experiência, surgem muito longe, no fundo de
uma memória que procura dar-lhes vida e consistência humana, estranha lembrança
anônima, a memória do rio que desce a serra, das construções arquitetônicas
barrocas.
Tudo tem o
ar fatigado do que já passou, do que já se viu. Vá eu onde quer que vá, hoje,
tenho a convicção e consciência de chegar cinco minutos demasiado tarde aos
lugares e neles não encontrar mais do que a memória impessoal do nada, o céu e
as serras ainda juntos que se recordam ainda por um momento de uma cidade no
abismo, antes de se espalharem em puro amontoado de espaço.
Como eu vou
me sentir supérfluo, superficial, único presente no meio do universal
envelhecimento, correndo o grande risco de estourar como os peixes das
cachoeiras que são trazidos à superfície, porque os homens estamos habituados a
viver sob uma infinita pressão e estas rarefações não nos podem fazer nenhum
bem.
Atenas
contenta-se com recordar-se a si própria e o turista erra, desamparado, no meio
deste abismo fantástico no qual a arquitetura é a principal miragem.
#riodejaneiro#,
10 de junho de 2019#
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