SERMÃO DE INSURRECTOS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA
Explico
muito bem como uma peça, um indivíduo podem ter algum interesse e não possuírem
quase nenhum delírio, desvario, nenhum mérito. Sou sim inteligente o bastante
para provar em poucas palavras que não basta conduzir uma ou duas de situações
difíceis, amargas, sublimes e felizes, encontrados em todos os romances que
sempre seduzem os leitores, em artigos que encantam os ouvintes. Conhecer o ser
humano é deixar-lhe rumine as alegrias e dores, de modo natural ou poético, de
acordo com o estilo e gosto próprio.
Ser
insurrecto sem demonstrar ou monstrar, conhecer sobremodo de imagens e
linguagem, falar com pureza, com uma harmonia continua, faz-me ter uma vontade
de quebrar a cabeça contra as paredes do dormitório ou do escritório, isto até
vale uma rima que não custa nada. Imagino o que é ser obrigado a consolar e
acariciar indiferentemente um negociante velho, um advogado de várias, inúmeras
causas perdidas, um padre ou monge.
Imagino o
que é ser exposto a todos os insultos, a todas as afrontas públicas e
individuais. Ser obrigado a muitas vezes pedir de empréstimo uma cabeleira e um
vestido, maçãs ou laranjas servem de seio, para ir à tabacaria comprar o velho
charuto. Logo haveria de concluir, e não sem razão explícita e lógica, que sou
eu uma das criaturas mais inconseqüentes do mundo.
Isto, claro,
gozando de um destino que deve causar inveja a todos. Rosas da saúde brilhando
em minhas faces, o meu ar anunciando felicidade, como as mocinhas alegres e os
adúlteros contentes e saltitantes pregam alguns maus sermões que lhes valem os
aplausos e elogios.
Pergunto aos
eruditos se eles se aborrecem tanto na leitura de escritores modernos e
contemporâneos quanto eu. Os que são sinceros confessam-me o livro lhes tomba
das mãos, mas que sempre é preciso tê-lo na biblioteca, como um patrimônio da
humanidade, e como as moedas antigas enferrujadas, sendo vendidas pelos
especialistas a preços módicos.
Até a ponto
de admitir antigas culpas e, o que deve resultar em uma natureza facilmente
excitável, senão remorsos positivos, ao menos, o arrependimento do tempo de
insurreições e profanações, mal empregado, com certeza. O conhecimento das
diferentes hipóteses sobre o ser humano, o destino dele, não é certamente
complemento inútil - não mais que o amor pela virtude, virtude abstrata,
mística, que são postas em todos os livros de que se nutrem bem os adultos
modernos, como o mais alto cume que uma alma honrada e digna possa escalar, uma
águia possa subir, um pangaré pode estacar. Acrescentando a tudo isto uma pitada
de sutileza de sentimentos que omito como condição superficial, creio ter
reunido os elementos gerais mais comuns ao homem sensível moderno do que
poderíamos chamar de estilo vulgar da originalidade.
As ninfas de
pele clara e resplandecente observam com grandes olhos profundos e mais
límpidos e nítidos que o céu e a água; os personagens da Antigüidade, ridícula
e vulgarmente vestidos com seus trajes sacerdotais ou acadêmicos, trocam com
qualquer indivíduo, por um simples olhar, solenes confidências. Nos lugares que
parecem desfrutar da paz e onde florescem as artes, os homens são devorados de
mais inveja, despeito, de mais cuidados e inquietações do que experimenta de
flagelos e desgraças uma cidade cercada por montanhas. Os pesares, lamentos,
lástimas são ainda mais cruéis do que as misérias públicas e sociais.
Não penso
nada disso: acho que tudo anda às avessas; que ninguém sabe qual é a sua
erudição, nem a sua função, nem o que faz, nem o que deve fazer, e que,
excetuado este patrimônio dos insurrectos, que é bastante divertido e onde
transparece suficiente harmonia e sintonia, todo o resto do tempo se passa em
impertinentes e inconseqüentes colóquios nas esquinas ou sentados nas tabernas
e tabacarias.
O casamento
do patrimônio e da erudição e as ligações que os amores fáceis deitam à luz
fazem vomitar qualquer homem que tenha um gosto pouco mais delicado e nobre, e
a sua longa descrição de uma situação vivida e experimentada, a vontade de
chorar é latente, é boa para velórios acompanhados de uma cachacinha da roça
muito apetitosa.
Ontem, um
amigo por quem alimento muita amizade e dedicação, disse-me que felizmente não
morrera com seu alto nível de glicose. Sua preocupação fora a de não ter um só
gole de cachaça em casa para a despedida. Não se esquecerá de comprar umas duas
garrafas para deixar, serão para os amigos íntimos.
Se ao nosso
insurrecto falta-lhe a beleza pessoal, não creio que ele sofra por longo tempo
por confissão sincera e verdadeira à qual sente-se obrigado a fazer, nem que se
vê como nota altissonante do mundo de harmonia e beleza improvisado por
imaginação fértil.
Confesso que
este termo "dúvida" está irritando os ouvintes,, afigura-se não mais
consigo entender coisa alguma de nada, acontece o mesmo em algumas situações da
vida quotidiana, mas aqui com muito mais ardor e sutileza! Ademais, isto é
necessário sim afirmar com veemência, como um ser tão bem dotado de
inteligência e perspicácia para compreender a harmonia, uma espécie de
acadêmico da Beleza, poderia ser uma exceção e uma nódoa em sua própria visão
de mundo, em seu próprio ponto de vista. A graça e suas seduções, a sutileza e
suas mazelas, todas estas idéias se apresentam logo como retoques e ornamentos
de uma feiúra indiscreta, inconsequente, em seguida como consoladoras, enfim,
como aduladoras perfeitas de um certo imaginário.
Ora, como
não se trata aqui de uma oratória pedante, mas de emoção mesclada com um olhar
de soslaio às cenas de uma meiguice insolente, rogarei simplesmente ao ouvinte
ou leitor que a imaginação de um indivíduo perspicaz e sutil, é levada a um
nível bem prodigioso e elementar, tão pouco inteligível como a força extrema do
vento em uma borrasca, e seus sentidos aprimorados a um ponto quase também
difícil de esclarecer, definir.
É permitido acreditar
que uma suave ternura, a mais ingênua, inocente de todas, um aperto de mãos, a
visão de mão feita de nuvens no céu claro e nítido, pode ter um valor
inconteste pelo atual estado da alma e dos sentidos e pode conduzi-los, talvez,
de maneira rápida, veloz, até esta síncope considerada pelo vulgo e analfabetos
como o summum da insurreição.
Não é menos
provável que uma dose de sutileza e sensualidade se mistura a estas agitações e
reclames do espírito.
#riodejaneiro#,
09 de junho de 2019#
Comentários
Postar um comentário