NÓ GÓRDIO DE MUITAS FOMES GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Vós, ar, que me dais o alento para criar e recriar,
para falar com letras e vírgulas o que, a custo da respiração e inspiração, me
habita; vós, que do disperso e ad-verso, tirais meus desígnios, dando-lhes
forma e estilo, sem dúvida, de-forma, e aí é que entra o engenho da
transformação e mudança.
Vós, luz, que me envolveis em seus raios
multicores, às vezes de tonalidades ambíguas, e todas as coisas com as vossas
ternas e delicadas ondas; vós, não sei se diga sendas ou veredas, mas gastas,
com certeza, escavadas por passos irregulares, à margem dos caminhos...
Deveria acreditar que vós, luz, guardais os
segredos e mistérios das existências, sois-me demasiado querida; às vezes, não
desejada: dormir convosco acesa não é saudável, o escuro é fundamental para
embalar o sono, trazendo-me os sonhos.
Agora desejais participar-me os segredo e
des-segredos. A parte deste minuto, e de todas as horas do dia, inclusive da
noite, ela é parte do dia, aliás, fundamental, ordeno a mim mesmo: liberta-te e
não te libertas dos ilimites e limite das linhas imaginárias com que teço as
idéias e intuições que se me revelam. Assim, posso rumar-me em direção ao que
não quiser – se não o quero, algo com certeza há-de explicar nitidamente a
razão de não o querer, não satisfaz os anseios mais profundos, além do que
algumas conseqüências prejudicam o andamento até realizar as intenções; ao que
quiser – se quero mesmo, se estou dis-posto a entregar-me inteiro à busca,
esperando o encontro, mas o des-encontro também é fundamental para mostrar há
ainda a esperança de realização, não haver quaisquer conseqüências arbitrárias
e gratuitas a impedirem de assistir à glória desejada.
Consciente de minha força, se contentar com a
aparência de ser fraco, será ela o modelo da humanidade. Quando a miséria me
surpreender e me dar ilustre posto, sem que a ela chegue por degraus
irregulares, ou sem que a ela me tenha descido com as minhas esperanças, é
quase impossível ficar bem, confortável, sabendo a fraqueza ser a aparência, a
verdade, a força, estupidificado com o fato de não ter coragem de assumir a
força, parecendo-me digno de saciedade de tudo o que me falta, longínquo está,
devendo, então, seguir à busca do encontro de ver saciado os desejos mais
profundos que me habitam.
A abnegação, fé, esperança, não sei mais quê ainda,
não são dominadas pelos infortúnios, revertérios dos destinos e sagas. Se me
deixo, melhor ainda, se me permito deixar-me seduzir pelas desvantagens do
momento e que somente as pequenas e frágeis almas são capazes de comover-se com
as perspectivas de bem e mal que me habitam, a minha tarefa é consultar o
oráculo de Pítias ou das Sibilas, quem sabe para me conscientizar de que
necessito com urgência distinguir um do outro, desaprender isto da separação,
vivendo este paradoxo na alma e espírito, de dentro o desejo de superação a
partir da união de ambos.
A primeva mentira da primeira palavra é remédio
para cair e agarrar-me à cruz e confiar no ponto em que as duas madeiras se
unem. Busco o sem nexo do mundo. Cansei-me, enfastiei-me de empregar o precioso
tempo com apenas coisas úteis, coisas que engrandecem o espírito, amadurecem os
talentos e dons mais primordiais nos homens existentes.
Do sem nexo do mundo, posso in-ventar a casa do
aquém do homem: a casa barroca de cabeças vazias, que jamais se erguem,
postam-se a contemplar a estrela Vésper; de cabeças que arrebentam o teto ou o
telhado da casa, vislumbrando o universo sem limites e fronteiras.
Zaratustra diz que tem fome dentro de sua
saciedade, mas nunca tem fome criadora, que vai mais além de sua finalidade, de
sua utilidade, apenas para complementar a idéia, embora o eco venha a
prejudicar o estilo, isto não importando, para buscar complementários inocentes
e misteriosos.
A noite já é minha, sou noite, só o dia me foi
roubado.
Se Zaratustra diz ter fome em sua saciedade, digo
que sinto saciado em minha fome, na idéia muito pouco esboçada, mas que revela
uma perspectiva outra de interpretação que petrifica a olhar, e só os oráculos
de Pítias ou Sibilas podem dar uma visão mais ampla da humilhação que isto
mostra àqueles que se arrastam pelo chão enquanto os deuses se refestelam no
insigne Olimpo.
Ditosos são os efêmeros que posso contemplar o
movimento como imagem da eternidade finita e seguir absorto a parábola da
flecha até seu enterramento na linha do horizonte.
Se se passeia pela avenida da Saudade que vai
terminar no Cemitério Municipal, ou pela rua do Bonfim que vai terminar na
Cadeia, sendo isto uma realidade, embora o despropósito e a ironia que existe,
outra coisa não se manifesta senão o riso debochado, a gargalhada que pretende
extinguir o nó górdio de muitas fomes seculares e sedes milenares.
Não insatisfazendo os débeis, não é intenção gerar
controvérsias e polêmicas, ao in-vés disso, desejo satisfazer a todos os gostos
e paladares. Se não deixar isso esclarecido, posso não ser entendido, e o para
quê me dis-pus a pensar e refletir será para sempre desconhecido, o que é pior,
não reconhecido como algo de fundamental.
Desejo viver os pontos fracos, não só os que se me
apresentam, mas aqueles que estão inconscientes, mas a continuidade dos
apresentados faz revelar os que estão escondidos. Viver só como se, neste
momento, a língua sirigaita insistisse com pujança em dizer, digo que está na
hora de mudar de dicção, de impostação da voz, de mudar de rumo ou rumar fora
de rumo, sem rumo, porque, assim, não preciso de mudar, fazer-me mudança,
contínua e incontínua, contingencial.
Para mim, o passado são os agoras do agora, e tudo
é des-reguladamente possível, porque tudo se abre para o impossível, como um
pótens através do qual todos os possíveis transpõem as barreiras das
linguagens.
Nisto é que reside o fundamental de todos estes
pensamentos e idéias desencontrados e dispersos, qualquer tentativa de união
termina sendo vã, mas isto é que seduz a continuidade da entrega.
Acredito que o destino não envia arautos e que se
tivesse de emitir algum conceito ou categoria sobre arte, baseá-lo-ia na
liberdade incondicional da escrita, esta que permite que estes pensamentos e
idéias se tornem oráculo ou não: a arte deve não compreender e não representar
a morte em todas as formas diversas, mas a vida em todos os seus estilos e
linguagens harmoniosos.
Concluindo estes despropósitos todos, diria, em
última instância, que a vida só deseja livrar-se da morte e não aprende a
livrar-se de si mesma. São crenças que dentro trago em mim, podendo ser
admirada ou simplesmente virar-se-lhe as costas como testemunho de sandices
milenares e seculares.
#riodejaneiro#, 16 de junho de 2019#
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