SOALHEIRA DE ANGÚSTIA E ÁGUAS GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Em minhas
andanças pela cidade – esqueço-me agora das ruas sujas e os becos fedorentos
que aqui são parte de nossa realidade quotidiana. Paris não ficara na história
como sendo a cidade mais imunda e fedorenta do século XVIII? Em nossa coevidade
existe outra inda mais séria neste aspecto, tratando-se, obviamente de nossa
amada Atenas Atéia –, ouvira uma ou outra vez, ao passar diante de um casarão
velho, não sei como ainda não é só ruínas, quem sabe pelo que acontece no
quotidiano, seja a qualquer hora ou instante que se pensar, o som de um órgão,
sem que me detivesse nunca a escutá-lo.
Jovens,
adultos, velhos, hoje personalidades, artistas famosos, aprenderam as suas
primeiras lições ali naquele casarão que só Deus sabe o porquê de ainda não
haver caído. O som sustenta as suas vigas e suas estruturas profundas. Não me
estou a referir nestas palavras ao desmazelo e indiferença de muitos às suas
artes. Refiro-me ao som. Ele sustenta as vigas e estruturas. O sonho da
continuidade.
Mas, ao
ouvir o som outra vez, numa tarde de domingo, havia saído para um passeio sem
intenções quaisquer de um itinerário e de um objetivo, espairecer as idéias um
pouco, assim é o costume de dizer, quando não se está fazendo uma caminhada, aí
é outra coisa bem diferente, trata-se de cuidado com o corpo, a sua
conservação, e muito por causa da moda que é isso de caminhada, não há quem
dentre os médicos que não incentive, tomando os seus cuidados e precauções
neste ou naquele sentido, parei para escutar, a Nona Sinfonia de Beethoven.
Aproximei-me
da porta do casarão, encontrei-a fechada – era algum ensaio dos músicos para
alguma apresentação de nossas mais insignes eventualidades –, e, como passasse
pouca gente por aquele beco, sentei-me num dos degraus, cruzei os braços dentro
de um ponche – estava um dia de inverno muito rigoroso em Atenas Atéia, o que
muitíssimo me faz bem e me dá muitos prazeres, eu que não nasci para outras
estações, senão para a primavera também, mas isto em se tratando de outros
aspectos, que aqui não estão sendo chamados para participarem. Pus-me a ouvir.
O órgão,
embora não muito potente, era bom e o organista tocava com insigne perfeição,
com uma personalíssima expressão de vontade e tenacidade, que soava como uma
prece.
Tinha a
sensação – bem, este é um termo que escolhi após pensar em impressão, intuição,
embora não consiga de forma alguma precisar qual seria o mais adequado nestas
circunstâncias – de que o homem sentado junto ao teclado sabia encerrar aquela
música um tesouro, um sentimento agudo e forte que se apresenta ao espírito e
diante do qual não se é possível furtar-se a um mergulho muito fundo nas
origens, nos subterrâneos mais profundos da alma humana.
Esforçava-se
por trazer todas essas sensações, impressões, intuição, sentimentos, sonhos,
dores e sofrimentos, para encerrar, como se fosse a sua própria vida.
Tecnicamente,
não entendo bulhufas de música, e acho que se entendesse não me daria tantos
prazeres e alegrias, não confortaria a minha alma sedenta de preencher os
vazios; mas, desde criança compreendia, por instinto – digamos assim, dom não
seria – essa expressão da alma e do espírito e sentia em mim o gosto musical.
O músico
tocou em seguida uma obra moderna, creio que algo de Chopin. O casarão já
estava quase às escuras, só um vago resplendor se filtrava através de uma das
janelas.
Observava
algumas pouquíssimas pessoas passando, acompanhadas de íntimos, amigos,
conhecidos, solitários, era um dia de inverno muitíssimo rigoroso, causado por
uma chuva muito forte que dera, e sendo inverno oficial a temperatura ainda se
torna mais intensa. Não chegava a ser um frio de doer nos ossos, estes que
nunca doem.
Não me
interessei por pensar, sentir o que neles dentro habitava, se estavam felizes,
tristes, angustiados, sentindo-se os mais desafortunados ou afortunados. Não
era isso que estive a observar com olhos perdidos e cínicos, a música
despertava em mim esses sentimentos, deliciava-me com a presença deles a ponto
e natureza de perder-me, de ser cínico com estas perdas, de imaginar e sentir
muito forte que a perda e cinismo de todas aquelas pessoas que passavam por
aquele beco eram o mais esplendoroso, mostravam e bem que eram capazes e
vocacionados à mudança e transformação.
Esperei que
a música terminasse e fui logo postar-me diante do casarão para ver sair o
organista.
Era um homem
ainda bastante jovem, se tivesse os seus vinte e oito anos era muito, de figura
robusta e bem fornida, andando rápido e com passo firme e quase automático.
Perguntei-me
se eram os resultados de seu ensaio, tocando Beethoven, era uma luta corpo a
corpo com a música. Não estava nem um pouco disposto a começar a pensar nestas
coisas – há momentos para isso. Esquecera-me da pergunta, quais as respostas
viáveis e inteligentes poderia revelar, para me lembrar de que o sentimento que
perpassava o espírito, quando me punha a ouvir músicas, era de que poderia
sentir as alegrias e prazeres que tanto me sentia sedento, a música
ajudar-me-ia a dizer palavras revelando o que me habita de mais profundo.
Depois desta
primeira vez que parei para ouvir a música tocada pelo organista, ensaiando
para as suas apresentações em nossos mais eventuais concertos, muito difíceis
de acontecer, só uma vez na vida e outra à soalheira de angústias e águas.
Voltei ao casarão em outras tardes, sentando-me junto à entrada ou passeando
pela rua, numa ida e vinda sem fim, chamando a atenção de transeuntes que
passava imbuídos e munidos de suas responsabilidades e compromissos, não
prestando qualquer atenção ao som da música.
Certa vez
encontrei a porta aberta e permaneci uns quarenta e cinco minutos no andar de
baixo, sem me dispor a subir as escadas, indo estar diante do órgão e do
organista, observando a sua destreza e habilidade com as teclas que são as
notas da música. Permaneci solitário no interior cheirando a velho, a algo
antigo, anterior a quais memórias primitivas e primevas, enquanto o organista
tocava as suas músicas, Schubert, Beethoven, Vinicius de Moraes, Chico Buarque
de Holanda, e todo um repertório de serenatas de autores clássicos e modernos.
Na música
que tocava não ouvia somente ele. Parecia-me também que todas as peças
executadas eram afins entre si, tocava ele de acordo com as suas manifestações
espirituais, sentimentos, músicas, e cada autor dava a sua contribuição através
da sensibilidade, intuição, percepção, e cada música revelava os seus sonhos e
utopias, os que habitavam-lhe.
#riodejaneiro#,
09 de junho de 2019#
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