#O OUTRO NÃO ANDA NOS MEUS SAPATOS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Se decido veemente que o outro nada tem a dizer-me,
nada há de seus valores e dignidades que me façam tergi-versar os caminhos,
embrenhar-me por outros caminhos-da-roça, nada tem a acrescentar nos meus
valores, tornar-me outro homem, não porque o que professo seja a verdade
inconteste, enxergo além da ponta de meu nariz adunco, enxergo além do eterno,
do absoluto, do ab-surdo, do instante-limite, enxergo a vida na sua pureza, na
sua essência, simplesmente, se investigo com percuciência suas atitudes, ações,
gestos, comportamentos são fundamentados na superioridade, hegemonidade, nas
sementes e raízes do poder, embora as obtusidades da natureza e da condição,
dos instintos, das fugas e escapadelas, nada e ninguém há que me convença,
persuada-me a ser, ao menos, ouvinte da fala, até dizendo ele que "saber
ouvir é manifestação de valor... de alguém quem está aberto e escancarado a
outras conquistas..."
Decidi que o outro nada tem a dizer-me. Se tenho
consciência, se sei com veemência de que, no estar-sendo, estou de olho aberto
para os equívocos, enganos, erros, fantasias, quimeras, tremelicando,
estrebuchando por um raio de luz que ilumine, por que haveria de ouvir com os
ouvidos, escutar com o coração as pernosticidades, as superioridades, os
complexos de grandeza e importância? Prefiro arrastar-me nas sarjetas, esmolar
nas portas das igrejas por um pão a engabelar-me a fome, morrer indigente, ser
enterrado num caixão de nada, sofrer o pão que o diabo amassou com o rabo, a
dar qualquer crédito a este outro.
Aliás, o outro não anda nos meus sapatos, nada sabe
do que interiormente me habita, não tem conhecimento de meus limites, dos
liames limítrofes de meu ser.
O outro é o outro, eu ainda estou por ser, estou à
busca de quem sou, do que re-presento, de quem está dis-posto a morrer por sua
liberdade, por suas verdades, inda que frutos da imaginação fértil.
#riodejaneiro#, 20 de junho de 2019
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