A LIBERDADE DE NINGUÉM É PERIGOSA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA ****


A LIBERDADE DE NINGUÉM É PERIGOSA

GRAÇA FONTIS: PINTURA

Manoel Ferreira Neto: PROSA

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Há felicidade mais abismática que a de um olhar que silenciou frente ao mar da ec-sistência, e não mais é-lhe dado se satisfazer em sua superfície e nessa delicada, variegada e tremelicante película marítima; jamais dantes existida tal modéstia da volúpia.

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Dirijo o olhar a um amplo e esbranquiçado mar, para além dos rochedos da margem sobre os quais incidem os raios numinosos do sol, enquanto uma fauna pequena e grande diverte-se sob sua luz, segura e tranqüila.

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Sim, o que escrevo neste instante sobre estar olhando o amplo e esbranquiçado mar não é de ninguém. A liberdade de ninguém é sobremaneira perigosa – acaso já avaliei com percuciência este perigo? É como o infinitivo do verbo que tem ares de primeira, segunda, terceira conjugações. O perigo é flexionar esta liberdade de ninguém.

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O melhor de mim é quando nada é-me sabido, de nada tenho consciência, escrevo sei lá o quê. Estou entrando sorrateiramente num terreno in totum desconhecido por mim, numa realidade nova, inédita, não tenho inda pensamentos e idéias correspondentes, e muito menos quaisquer noções de palavras que os signifiquem. Alternativa não há senão desenhar letras a esmo, nisto há aquilo de aperfeiçoar a caligrafia, nada mais lindo que algo escrito assemelhar-se a um pergaminho, aquela sensação pujante de uma escritura que atravessará os séculos, e sempre ad-mirada, venerada, glorificada.

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Só agora percebo com veemência o enviesado da ec-sistência. Antes só via através de verbos defectivos, de sentidos concretos, como por exemplo “A bola é redonda”, quando o predicativo define a forma.

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Escrevo a esmo, e assim não me sendo dada a perspicácia de desfazer, desmanchar os nós do enviesamento da existência, procuro entender o significado da solidão que é estar em contacto com as palavras e o de estar no mundo, neste momento olhando o amplo e esbranquiçado mar, no desencadear dos segundos e minutos que prefiguram um presente contínuo onde os limites cada vez mais puídos entre o que é interior e exterior escafedem-se.

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A solidão das palavras é muito íntima e a minha, abismática. Mister mergulhar de uma só vez na intimidade delas e no abismo de mim. Impossível. Seria o mesmo que mergulhar na piscina de minha residência e no mar que fica distante uns cinco quilômetros ao mesmo tempo, não sou dois, não sou tampouco omnisciente e omnipresente. Mergulho que abrange o entendimento e o não entendimento. Apesar de perquirir quem seja eu para pensar, ousar pensar neste nível, surgiu-me num passo de mágica que espécie de mergulho devo realizar, entendendo e não entendendo a intimidade da solidão das palavras e o abismo da minha. Como fazer isto? Sei, porém, que só andando é que se sabe andar e – milagre - se anda.

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Devo andar na intimidade da solidão das palavras e no abismo da minha, e sem ao menos fantasiar a síntese de ambas.]

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Não posso ver-me de por trás dos cantos, é uma curiosidade sem esperanças, querer saber quais outros tipos de intelecto e perspectivas poderiam existir, se alguns seres conseguem sentir a solidão recuar ou ir para a frente(com o que seria dado outro direcionamento à vida e outro conceito de limite e abertura.) O mundo tornou-se mais uma vez infinito para mim, à medida em que não posso rejeitar a possibilidade de que ele inclui infinitas interpretações.

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Pensar a solidão das palavras, que é íntima, a minha, que é abismática, olhando o amplo e esbranquiçado mar, além dos rochedos da margem, essa espécie de pensamento não atinge seu objetivo no próprio ato de pensar. O jardineiro sábio coloca o seu pobre fluxo de água nos braços de uma ninfa em uma fonte, e assim explica a sua pobreza. Coloco então os meus limites de pensar a intimidade da solidão das palavras e o abismo de minha solidão nas mãos vazias do tempo, e assim vou seguindo a caminhada do ser e das palavras, com efeito infinita, sem quaisquer esperanças de uma realização definitiva.

A liberdade de ninguém é perigosa.

Rio de Janeiro(RJ), 23 de maio de 2021, 23:13 p.m.

 

 

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