ORVALHANDO AS PALAVRAS DE PÁGINAS VIRADAS# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Houvera pretérito de lembranças nítidas e nulas, re-colhidas e
a-colhidas do momento, se se desejar, instante-limite, na ponta da língua as
palavras descritas da conversação, ouvindo-as, no cume da Serra do Cabral,
acompanhado de um professor de História, fora seminarista, companheiro de
grupo, estava por se formar no curso primário, quarto ano, estava eu no segundo
ano, e um aluno de curso científico, primos, as conversações eram prolixas e
herméticas, aquela linguagem carregada de erudições, questionamentos e
investigações históricas, filosóficas, literárias, com aquele toque do
estudante científico, suas perguntas peculiares, alto-inverno, a neblina e as
nuvens, entrelaçadas, caíra uma tempestade enorme no final da tarde do dia
anterior, choviscara durante a madrugada, quiçá me prospectivasse, dissesse-as
ipsis litteris, passaram-se trinta e cinco anos, estava diante de um abismo,
evadi-me, contudo permanecendo no mesmo lugar, os amigos atrás, arrumando as
coisas para um churrasco de ponta de colchão, gordurinha sobrando, vinho, à
noite, dormíamos na barraca.
"O ipsis das metáforas da plen-itude que re-versa o além das
contingências com os confis do abismo, quando a re-novação das esperanças se
faz no entre-laçamento nupcial dos volos de verbos cujas gerências são lumes da
dialética do nada e ser, na koinonia simbólica dos latinos lácios do infinitivo
circunvagado de versos e estrofes do perpétuo nada, poiésis e poiética da
linguística pura e prática do vazio, poemática do absoluto", assim
garatujara numa agenda à margem de um rio, nas terras mineiras de Várzea da
Palma, terceiro dia daquele acampamento no alto da serra, inclusive por
precaução amarrávamos uma corda na cintura e a ponta na árvore, o rio era
perigoso, para tomarmos banho, mudarmos as roupas, noite do segundo dia regada
a garrafão de vinho e conversas filosóficas. Quiçá pudesse criar algo com tais
palavras e sentidos, os ventos diriam. Algum tempo se passou, uns três meses,
recebo uma crítica de um padre, manuscrita, amigo do professor com quem estava
na Serra do Cabral, por haver escrito algo e o professor guardou. Dizia o padre
ser eu "dialético da existência dialética".
Alvorecer de hoje visto sob os linces de amanhã, visão do imperfeito
subjetivo... De minha cadeira, analiso com olhar à solapa das contingências,
olhar crítico, paletó preto, calça jeans, sem nenhum modelo, suspenso no
cabideiro, a mania que tenho de usar paletó preto com gravata de nó, nalguns
eventos, cursos, paletras, gravata lilás, o que era moda nenhuma, naqueles tempos
de estudante de filosofia. O canto da coruja saudando o silêncio milenar do
genesis, solidão secular do cântico dos cânticos sob a cintilância da lua nova
que perfect-erseja o sublime de miríades do verbo do infinitivo, hoje
simplesmente estivera eu sentado na rampa de meu casebre, shorts e sandália,
sem camisa, a-nunciando o alvorecer...
Houvera felicidade e saltitância por vis-à-vis-lumbrar a travessia do
vazio em direção às forclusiv-itudes da esperança perfeita, dinar iraquiano da
ribalta do silêncio, picadeiro da solidão.
Orvalh-itudes de quimeras tocando as páginas viradas, se amanhã houve de
imortalizar os interditos de sonhos e esperanças, melancolias e nostalgias,
pretéritos, cujos estilos de linguagem olvidei, ad-nominando e ad-verbiando o
caos do efêmero, seria hoje, após sono profundo, nem me lembra se sonhei, a
plena saudade de manhãs em que regava os canteiros de flores, amava tocar o
orvalho nas pétalas e folhas, estudante de curso ginasial, dizendo-me estar
orvalhando as palavras, sorrindo de soslaio, a jornada era longa, sem fim.
Mister criar-me, re-criar-me, inventar-me, a verdade, as verdades me esperavam
nalgum terreno baldio de minh´alma, era engajar-me, arrancar-me de mim,
destrinçar-me, a faca afiadíssima de dois gumes do efêmero e eterno cortava-me
em todas as direções, a minha missão era o eu poético, utensílio que amenizaria
as dores da contingência, dialética da naúsea e dogmas do "ser". A
força do sonho; haveria de ser quem sou, as letras não mentiriam, a verdade do
"sou" seria registrada pelos dedos das mãos. Hoje estaria sentindo e
pensando estar bem distante ainda do que sonhava realizar naqueles idos
pretéritos de trinta e cinco anos, na Serra do Cabral, Várzea da Palma, são
apenas garatujas fortuitas, quanto mais eu ando mais vejo metafísicas e
metáforas na poeira das estradas, são inspirações para outras in-vestigações e
perquirições do nada e do vazio, do vazio à luz do silêncio, quanto mais
perscruto e in-vestigo mais me entre-laço de dúvidas e contra-dicções, são asas
com que alço o voo do conhecimento e sabedoria, uni-versos, constelações, o
espaço...
Houvera de pretéritos éritos de lembrança, inda que ínfima, do alpendre
do interior da casa, a tampa da cisterna arrastada, o balde d´água sobre, a
manivela que re-colhia a água, manivela de ferro bruto, aproximei-me com todo o
cuidado, deitei no chão, olhei o fundo, não correria qualquer perigo de cair
dentro e afogar-me, o que me viera naquele instante, que um pouco mais fundo, a
visão não alcançava, água, quiçá o cheiro de terra me haja tocado, o gosto,
sabor da água, após filtrada, traz em si a terra, que sabor inestimável, e se
colocada sementinhas nela para filtrar, não me lembra o seu nome, dá-lhe inda
mais sabor, é um sabor de goiaba verde. Olhei a mesma cisterna com a
honestidade de quem não se engana com o que olha, como quem lavra a existência,
e planta, e colhe, e vive, e morre, e olha. Mudou-se a rua da infância, da
juventude, início da maturidade, símbolos obscuros se multiplicam, vem um sopro
que cresta-me a face e dissipa, na praia, as palavras.
As dificuldades são esquivas, tomando em consideração estarem fundadas e
estabelecidas na obtusidade do nada, nadificidade do obtuso; equívocas: as
dúvidas que se a-nunciam são unicamente uma fantasia para semente de outras
tentativas e esforços. Diante de minha adoração possessiva poderia retrair-me e
jamais voltar a cuidar delas, transformá-las em facilidades, fazê-las
curvarem-se, mostrar-lhes que não é tão fácil vencer-me, sou osso duro de roer,
sou cabeça dura.
O silêncio arrogante refugiou-se no coração, a solidão prepotente se
entrelaçou nos liames do passado e presente, o deserto do ser e não-ser se
alinhou nas teias das esperanças e fracassos, as vaidades e orgulhos
inestimáveis da liberdade em questão se sintetizaram à busca inesgotável da
consciência-estética-ética. Somente os ouvidos aguçados conseguem de-cifrar o
soluço de vida, o murmúrio de ser, no coração enigmático das palavras.
Não são grupos submergidos nas geleiras da insônia e entressono, e que
deixam desnovelar-se, menos que simples palavras, menos que folha no outono, a
partícula sonora a vida em si traz.
#RIODEJANEIRO#, 27 DE SETEMBRO DE 2018)
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