#ALDEIA DE LÁGRIMA DE INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO IV PARTE I
Hei-de refletir... Isso hei. Refletir nos meus pensamentos – Deus não dá
mesmo asas às cobras. Não me deu o dom da palavra: iria ferir a todos os homens
com elas, dizer-lhes na cara o que penso e sinto, os instintos todos presentes
sobre as posturas e atitudes, de mesquinhas a estapafúrdias. Não falando, sofri
nos pelos e rabo as censuras e discriminações de todos em Atenas Atéia.
Não tenho saudade alguma daquele lugar. Agradeço a Deus haver podido fugir,
exilar-me noutra região diferente, agropecuária. Sem isto, não poderia refletir
sobre muitas questões dos pastos e das coxias. Se me houvesse sido dadas as
palavras, refletiria nelas como bons grãos; os dentes, quando não estivessem
triturando o feno ou outras “cositas” mais, deveriam triturá-las, moê-las
centenas, milhares de vezes, enfim nada agradável asno morrer engasgado com
adjetivo grande e mal mastigado, verbo atravessado na garganta. Trituraria as
palavras até me correrem pela alma feito leite. Não iria precisar nem engolir.
Mas não. Não me fora dada a palavra. Não me vexo. Faço-o com os pensamentos.
Não faz muito tablóide de Lágrima dos Insanos publicara crônica escrita
por Revaldo Leitão, escrevera algo sobre o rato. Ratto Neves fizera o único
comentário: “Ele deveria escrever sobre o leitão. Ficaria mais original”.
Ontem mesmo. Era hora do crepúsculo. Os vaqueiros levavam as vacas para
o curral a cavalo. Distanciei-me para não ficar no caminho deles e dos animais.
E se um deles resolvesse me levar para o curral. De madrugada, quatro e meia,
quando levantam para ordenhar as vacas sob a luz do lampião não prestasse
atenção direito, havia tomado muita cachaça, ainda não estava vendo direito,
dormira muito mal, decidisse tirar leite em asno.
- Isso não é vaca... É asno...
- Quem deixou Incitatus entrar no curral?
Seria motivo de mofa de todos. Estava confundindo asno com vaca. Ratto
Neves com certeza iria tirar sarro: “Enquanto uns encontram chifre na cabeça de
cavalo, Tenório Dunga tira leite em asno”. Por todos os cantos de Lágrima dos
Insanos ouvir-se-ia: “Tenório Dunga tira leite em asno”. Com o tempo, viraria
expressão dos humanos. “Tirar leite em asno” significaria a dificuldade de
reconhecer as coisas no escuro, quanto mais após noite de muita cachaça. Acho
que não. Mais provável significar: “Viver é tirar leite em asno”, isto é, uma
das tarefas mais difíceis no mundo. Falou que é coisa impossível de ser
realizada “viver é” entra em ação: “Viver é durar até acabar e mais seis meses”,
“Viver é sentar na tora de madeira, final de tarde, contemplar o crepúsculo”,
etc., etc.
Coisas impossíveis... Absurdos. Existem os “cúmulos do absurdo”. Por
exemplo, cúmulo do absurdo é dar nó em pingo d´água antes de bater na janela de
vidro e escorrer. Existem muitos exemplos. O mais comum é passar asno no fundo
da agulha.
Debaixo de um pé de pequi abismei-me em sombrias recordações – digo
sombrias devido ao fato de a vida em Atenas Atéia, por pior que fosse, no meio
de pessoas alienadas, escroques, imbecis, mas era mais movimentada. Mesmo que
não quisessem as pessoas, mas tinha atenção de todas.
Pareceu-me já ter-me encontrado naquele lugar.
Preocuparam-me o instinto coisas tão sombrias que fui sentindo lombeira
jamais sentida por humano algum. Estando a puxar carroça morro acima e abaixo,
no final da tarde não sentia qualquer lombeira. Não me sentia cansado. Se sou
animal de tração e carga, por que iria cansar-me? Nada disso. Poderia ficar
cansado de nada fazer. Era o que acontecia. Tornei-me animal de abegoaria. São
as tais coisas: há tempo de puxar carroça, quando se deseja estar num pasto com
bastante capim, enfastiando-se de tanto comer; há tempo de nada fazer, quando
se deseja estar puxando carroça. O mesmo acontece com os humanos. Proprietários
de castelo de cristal sonham com choupana. Vice-versa. Acabei por deitar-me na
grama e fechar os olhos. Que outra coisa teria para fazer senão isto? Tinha de
esperar a lombeira passar.
(#RIODEJANEIRO#, 10 DE SETEMBRO DE 2018)
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