#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO V - PARTE III
Sabia-se que o rei tinha uma filha que já estava encalhada, ou seja,
passava da hora de casar, ninguém se oferecia para namorá-la, apesar de muito
linda, cabelos louros, dócil, educada. Decidira, então, oferecer a filha a
alguém. Quem levasse o melhor presente, teria a filha como mulher e todas as
comodidades do reino. Abrira as portas. O primeiro que chegou levou caminhão de
ouro.
- O que é isto? – perguntou-lhe o rei.
- Ouro, meu rei... A minha oferta para me casar com sua filha.
- Isso não é presente para ela.
O segundo que chegou levou caminhão de diamante. Também não aceitou. O
que os súditos pensavam que a filha fosse, uma qualquer? O terceiro que chegou
levou caminhão de banana.
- Banana?
- Sim, minha majestade... É o presente para ter sua filha como minha
digna mulher.
O reino estava sem banana. Alimentaria a corte inteira por uma semana e
meia, isto se proibisse comerem muito.
- Fico com o frete... Mas não é presente para minha filha.
Alguns criados quiseram logo experimentar das bananas, deviam ser
deliciosas. Bocage Furtado, o dono do caminhão, ria a bandeiras soltas. Estava
incomodando. O rei e as criadas comiam bananas.
- Como é seu nome?
- Bocage Furtado...
- Bocage Furtado, pode me dizer porque é que está rindo tanto, tem
alguém aqui com cara de palhaço?
- Não, minha majestade... Estou rindo é porque Gregório de Matos, amigo
meu, está trazendo três caminhões de abacaxi para presentear a sua filha.
Não ouve quem não risse da piadinha, muito espirituosa. Não podiam
entender algumas coisas da piada, o filho é que havia formado na universidade,
sabia de muitas coisas, aprendera muito na relação com os colegas, professores,
personalidades. Aí, é que explicou quem eram as personagens, o que elas
significavam na cultura, nas artes brasileiras, poetas imortais e universais no
mundo inteiro.
Guido Neves adora contar piadas. Há algumas que saio de perto, despisto,
vou andando para outro lugar até sumir, de longe relincho, relincho,
relincho... Não apenas espirituosas, mas apresentam críticas acirradas à raça
humana. Interessante isto: o pai morre de vergonha de tudo, o filho conta
piadas que envergonham algumas senhoras por serem picantes.
Não sou nenhum Ratto Neves que por vergonhazinha imbecil e inocente
desfia o terço de vítima e culpado por os caminhos da vida serem tortuosos, se
não se aprende a contorcer os ossos, cai a todo momento de virar as curvas. Se
não me engano, há poeta brasileiro que explicou o porquê de seu corpo ser
contorcido: de tanto virar as esquinas de sua terra-natal. Não sou. Não é de
meu conhecimento que asno narrador de história a partir de instintos cínicos e
irônicos, razões ásnicas e deslavadas, possa encarnar os personagens, passar a
ser-lhes. Penso que só os humanos que contam histórias através das letras podem
encarnar suas personagens, mesmo assim durante o processo de criação. Aos meus
olhos, todos os humanos são personagens?! Até possível por ser equus asinus.
Posso afiançar que nada crio da realidade aqui na Fazenda dos Bois, conto o que
acontece.
Afastei-me de imediato. Ainda, de soslaio, procurei reconhecer se era de
homem aquela forma que estava sentada à pedra, fumando cigarro de palha.
Reconhecia a fumaça no ar. Não havia fogo no mato. Estava com muita sede.
Dirigi-me ao Rio das Pulgas.
Não sei porque não entro nele nem a troco de chibatadas. Quem sabe com
medo de não mais haver as que me infernizam a vida neste lugar. Tinha muito
carrapato, mas Lúcio Ferreira dava-me banho todas as tardes após o serviço,
esfregava com escova de fios de aço. Não me banham aqui. Estou com a cor típica
de asno-exilado. Fui exilado. Quem teria dúvidas disso? Quiseram sacrificar-me
por haver ensandecido. Que ironia do destino!... Acabei exilado num lugar
chamado Lágrima dos Insanos. Vou chorar lágrimas de nostalgia, melancolia,
saudosismo por não mais puxar carroça morro acima e abaixo? Não, é tempo de
rir, divertir-me com os meus próprios pensamentos. Passo sempre pela ponte,
quando decido dar caminhada pelo pasto sem rumo e destino.
Nos momentos de saudade, pensaria versos solenes:
“Atenas Atéia tem cabeças-de-manga,
Tem osso de pescoço;
Ah, que saudades que tenho
Desses seres de ouro. Ou seriam de prata, diamante?”.
Lágrimas e mais lágrimas descer-me-iam na cara, os olhos vermelhos. Nó
górdio na garganta, aperto no peito.
“Se algum dia eu voltar a Atenas Atéia,
Às janelas e portas estarão os cabeças-de-manga, os ossos de pescoço
Esperando encontrar-me forte e robusto, pronto para outras jornadas
Querendo eu encontrar as mesmas coisas que lá deixei:
Lúcio Ferreira e a carroça”.
À beira do rio, sendo de águas límpidas, com a luz do sol incidindo
nelas, posso nitidamente ver a imagem, da cabeça, obviamente, porque o resto do
corpo está atrás. Nem Van Gogh iria refletir o resto do corpo nas águas do Rio
das Pulgas. Fixo-me nos olhos, procurando ver se há alguma anomalia neles, se
estão vermelhos, apagados. Nada observo neles de extraordinário. Ademais, pude
perceber enquanto me dirigia ao rio que podia ver todas as coisas nitidamente.
Seria o caso, desejasse mesmo confirmar se não podia reconhecer era a
forma de homem que estava sentada à pedra, fumando cigarro de palha. Não faria
isto. Poderia voltar a ouvir a voz, pedindo, suplicando que lhe mostre os
mistérios; se os souber será extraordinária oportunidade para mudar de condição
humana, tornar-se ser humano de verdade, não um traste que se enganou a vida
inteira, tudo fora farsa sem eiras, as beiras dela só saberia depois de morrer,
só num canto da eternidade, roendo as unhas, arrancando os cabelos.
Manoel Ferreira Neto
(SETEMBRO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 12 DE SETEMBRO DE 2018)
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