#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO#
CAPÍTULO XI - II PARTE
À noite do dia em que Ratto Neves mandou o pregador ir “pentear asno”,
ou melhor, “pentear macaco”, estivera ele deitado à rede na varanda da casa,
lembrando das coisas do tempo de escola. Não gostava de ficar no meio da
criançada brincando no horário do recreio. Preferia ficar sentado a uma
carteira à porta da classe, que ele próprio colocava, olhando aquela bagunça,
gritarias, correrias. Quase nem falava com os colegas. Sentia vergonha deles.
Não sabia explicar de que vergonha se tratava. Não era de uniformes impecáveis
na higiene e asseio, não era de as notas serem mais do que as dele, das
inteligências serem mais de alto nível do que as dele. Não era por diferenças
sociais e humanas. Era vergonha.
Às vezes, dona Quita – seu nome era Quitéria -, a servente do grupo em
que estudava, via Ratto Neves olhando as crianças comendo os lanches que a mãe
preparara, sentindo pena dele, não tinha nada para comer. O que fazia, dona
Quita, diante dessa realidade a que assistia? Preparava dois pães com queijo ou
com carne ou com manteiga. À hora do recreio, aproximava-se dele, dando-lhe
para comer. Agradecia com tanta humildade. Era duro ver-lhe comendo, comia com
tanta boa vontade, passando até a ponta da língua nos lábios, quando terminava.
Quem sabe fosse devido ao cheiro de merda, o cheiro impregnou-se-lhe no
corpo, nada haveria que pudesse tirá-lo, a ciência nestes termos ainda é
residente e domiciliada no tempo do “onça”. Sim – quem dera não fosse, fosse
fruto de imaginação, trauma, o cheiro lhe impregnou junto com as surras de
Josefina-do-buxo, fosse sentimento de perseguição -, pessoas, observou sempre
isso, passam o dedo no nariz, despistadas, sutis, quando se aproxima delas,
quando elas se aproximam, é inevitável, sentem o cheiro de merda nele. A razão
da vergonha que lhe habita a alma é do cheiro que traz nas entranhas, no corpo.
Fora criança, adolescente, homem de muita higiene, tomando banho todos os dias
duas vezes, levantando-se, deitando-se. Não gosta é de perfume, dá-lhe nas
ventas.
Participara de peça teatral na Semana da Pátria. Seria ele Dom Pedro II.
Gritaria com todas as letras e empáfias “Independência ou morte”. Estava indo
muito bem a representação, algumas pessoas aplaudiam realmente eufóricas e
sensibilizadas com os talentos daquele pobre menino. A mãe estava mais do que
feliz, alegre, vendo o filho representando papel de herói tão importante na
História do Brasil. Não sonhara com ele se tornando ator de renome ou sem
renome. Sonhara com outra vida para ele com tanto talento, o público aplaudindo.
Quando a professora comunicou os nomes dos alunos que participariam da
pecinha, Ratto Neves se aproximou dizendo que não iria aceitar o convite. Não
iria representar o papel de herói. “Professora, eu sou menino pobre... Tenho
jeito de herói não”. Aí sim é que começa a vida de herói, quando é humilde para
dizer de pobreza, miséria. Quem sabe não seria grande homem no futuro. Com
palavras assim dirigiu-lhe a professora, tendo dito não ter jeito de herói, era
pobre, da periferia. Era o pequeno ator próprio para o papel. Não, não podia
aceitar. Isto valeria nota; fora o que encontrou para que ele representasse o
papel. Sem dúvida, nos dias de ensaio, a professora dedicou-lhe mais atenção,
ensinando-lhe as posturas diante de algumas falas de Dom Pedro II. Queria que
representasse bem. Fosse orgulho para Josefina-do-buxo.
Passara o resto do dia pensando na atuação. Obviamente que muita gente
do público iria sentir cheiro estranho no “galpão” do prédio. Falta de não se
sabe nem o quê, em verdade, as escolas não cuidarem dos sanitários com esmero e
apreço. Não seria devido aos gases de alguém porque este passa logo, sem deixar
quaisquer vestígios. Que cheiro era aquele? Alguns pais o conheciam. Saberiam
que o cheiro esquisito vinha dele, Ratto Neves.
(OUTUBRO DE 2005)
#RIODEJANEIRO#, 25 DE SETEMBRO DE 2018)
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