#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO VII - PARTE II
Sentara-se no alpendre num banco de madeira. Ratto Neves estava deitado
na rede, olhando o gado leiteiro no pasto, sentindo o dia agradável. O pregador
aproveitara da ocasião para falar sobre a compaixão. Para ele, da compaixão
surgia grande nuvem. Era preciso ficar alerta, os homens tinham de se precaver.
Todo o grande amor está por cima de sua compaixão, parece-lhe que conhece bem
os sinais do tempo.
O fim do mundo está muito próximo. Houve abalo sísmico na Ásia,
corrupção de partido político no Brasil, maremoto noutro continente, milhares
de mortes, cidade nos Estados Unidos riscada do mapa... A responsabilidade é de
Mefistófeles.
- Pastor, está perdendo o tempo com a sua ladainha – disse-lhe Ratto
Neves, sentindo-se irritado – Sou cristão.
- Também sou cristão, homem...
- Sou cristão católico.
Na sua infância, havia uma igreja presbiteriana frente à casa onde
residia; hoje é residência familiar e, ao lado, um cômodo-sede de tablóide dos mais
importantes de Lágrima dos Insanos. A mãe não permitia que se aproximasse em
dias de encontro. Se ele teimasse, a surra estava garantida. O homem só pode
ter uma religião na vida, a cristã. Dizem que o penúltimo sumo-pontífice
inventou uma de união de todas as igrejas, mas no final de seu discurso
referiu-se à Católica como a digna. As outras eram coisas de satanás... Chegara
a esta conclusão devido ao fato de os crentes só dizerem de Mefistófeles, muito
pouco pronunciam a palavra Deus. O homem não tolera a vida de semelhante
testemunha dos pecados, erros, enganos, falcatruas, mesquinharias e
mediocridades. Assim, chegariam a Deus, via Mefistófeles.
O pregador não dava a mínima atenção ao que dizia, insistia em falar
sobre a misericórdia, os castigos de Deus pela falta dela, aí é que satanás
aproveitava para entrar e fazer a sua moradia eterna. Procurava disfarçar a sua
irritação, olhando o gado no pasto, mas não estava conseguindo. Perdeu as
estribeiras.
- Pregador, vai pentear macaco com a sua ladainha...
Levantou-se da rede. Saiu, deixando o pregador falando sozinho.
Dizem as línguas que Jacinto Bofe era homem capaz de todas as atitudes
malignas que se pode imaginar, fazia mal a todas as pessoas, batia em mendigos
bêbados, tirava-lhes os trocados que conseguiam ganhar, espancava a mulher,
cuspia na cara de prostituas, saía dando tiro em policial montado em seu
cavalo... Mas vivia dando lições de moral nas pessoas, algumas lhes ouviu,
trataram logo de modificar as condutas, do jeito que estavam indo outro lugar
para elas não iria existir senão as chamas do inferno. A bem da verdade,
conseguiu converter muitas pessoas. A si próprio é que não se convertia nem a
troco de chibatadas.
Morrera em circunstâncias muito estranhas à beira da estrada. O seu
rosto estava todo dilacerado de unhas, no corpo algumas manchas muito
esquisitas. Os lacrimenses acreditam que tenha morrido nas garras do tinhoso.
Daí, nascera comentário. Batera à porta do céu. Quem atendeu fora São Pedro.
Disse-lhe de imediato que não havia lugar para ele no céu. Já estava
extrapolando as ordens de Deus e Jesus Cristo: não era para lhe abrir a porta.
As piadas que são contadas a respeito do céu, São Pedro, têm sempre
proibições, Jesus Cristo ou Deus proibiram. Fato é que a bicharada estava louca
por festa no céu. Alguns representantes dos bichos, a anta e o macaco, foram ao
céu pedir para que houvesse. Jesus Cristo de imediato disse que não, as festas
estavam realmente indecentes, coisas do arco-da-velha aconteciam. Os
representantes desfiaram os terços da lamentação até que Jesus Cristo permitiu,
com uma condição: todos os que fossem tinham de deixar o ânus dependurado no
cabide à porta. Tentaram contestar, mas era decisão radical. Aceitaram. Houve a
festa. Iguarias e bebidas várias. Lá pelas tantas da madrugada, bêbados o leão
e o tigre começaram a brigar. A coisa ficou verdadeiramente feia. Os bichos
saíram correndo, apanhando o ânus no cabide, pondo, indo embora. No outro dia,
mico estava pulando de galho em galho. Ouviu grito ensurdecedor. Foi pulando de
galho em galho em direção ao lugar de onde o som estava saindo. Encontrou-se
com asno a caminho, perguntando-lhe se sabia o que estava acontecendo para
gritos tão ensurdecedores. “Não sei de nada”. Encontrou-se com o elefante que estava
fazendo força enorme, e nada conseguia. Perguntou-lhe o mico: “O que aconteceu,
elefante?”. Respondeu-lhe que festas no céu são animadíssimas, muito boas
mesmo, iguarias, bebidas, mas não tem jeito o leão está sempre procurando
briga, e quem sai prejudicado é outro animal. “Mas o que foi que aconteceu?”,
perguntou-lhe o mico. “Depois daquela briga do leão e o tigre, os animais
saíram correndo, apanhando o ânus. Apanhei. E agora o resultado é esse. Não
estou conseguindo”. “Coisa simples, elefante... O pior aconteceu comigo: fui
dar um peido, virei pelo avesso”.
Manoel Ferreira Neto
(OUTUBRO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 15 DE SETEMBRO DE 2018)
Comentários
Postar um comentário