#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO#
CAPÍTULO XI - PARTE I
Imagino se estivessem aqui crianças, sentadas ao banco de madeira à
mesa, na grama, ou deitadas com um dos bracinhos amparando a cabeça, estando
eu, sentado no banco, as patas traseiras cruzadas, as dianteiras amparando a
cabeça, contando-lhes histórias de andanças enquanto puxador de carroça!...
Quem sabe até não improvisasse óculos com galho fino de árvore, tampinha de
garrafa, para fazer mais cena ainda. Acredito que morreriam de tanto rir de
tantas jericadas a que assisti, relinchando e até rebolando enquanto subia e
descia ladeiras. Não mais pediriam aos pais que as levassem ao circo, adoram as
brincadeiras dos palhaços. Isto quando aparece em Lágrima dos Insanos. Teria
todos os santos dias platéia enorme para ouvir as jericadas de asno chamado
Lúcifer-Incitatus. Não aparecessem circos na cidade, não teriam público mais.
Dar-lhes-ia dos meus instintos contínua prova de jericadas e asnices,
fazendo-lhes rir; em sombras cevaria a saudade, insaciável sempre, e sempre
nova, até que pudessem gozar da claridade do que é sério, que me inflamou desde
outros tempos, que se renova no seio da brilhante eternidade.
Chegara circo a Lágrima dos Insanos. Não circo decadente de tão pobre.
Muitos animais de espetáculo, cobras, elefantes, onça, tigres, ursos. Mundico Pega-Leve,
vendedor de bilhetes de loteria, bicheiro, embriagou-se. Na esquina da rua
Solimões e Pedra Azul, os carros que desfilavam os animais na jaula estavam
parados esperando o sinal abrir, Mundico Pega-Leve enfiou o braço na jaula do
urso. Ficou sem ele. As autoridades, terceiro dia de apresentação de
espetáculos, quiseram que o animal fosse sacrificado. Não podia ser, explicou o
proprietário do circo. Era animal muito caro, um dos melhores da companhia. O
proprietário dera quantia bem satisfatória para o tratamento de Mundico, que
deixara de ser Mundico Pega-Leve para ser Dico-Urso. Desfizera o circo, fora
embora da cidade.
Em verdade, o nome dele era Raimundo Nonato. O apelido lhe fora dado por
ser cleptômano. Excelente, ótimo eletricista, consertava com perfeição os
utensílios elétricos, ferros, liquidificadores, geladeiras... Não podia
encontrar coisa alguma que fosse fácil de colocar nos bolsos que levava. Assim
fora apelidado Mundico Pega-leve. Alguns disseram que ficar Raimundo Nonato sem
o braço fora castigo de Deus por roubar, ser ladrão, ser cleptômano. Muitas
famílias lacrimenses dos insanos contratavam-lhe os serviços, mas colocavam os
filhos para vigiá-lo.
Quem gosta muito de circo é Fomá Fomitch. Adora as brincadeiras dos
palhaços. Tem problema. Seja Ratto Neves, Guido Neves ou Ragozina Neves que o
leva ao circo tem antes de preparar lenço molhado com água gelada. O quadro dos
palhaços é sempre o último. Costuma dormir. Se cochila, um deles passa-lhe o
lenço no rosto, desperta-se elétrico, ansioso por logo ser a vez dos palhaços
entrarem em cena. Há quando não se desperta, levado nos braços. No outro dia, a
tristeza por não haver assistido ao quadro dos palhaços.
Limito-me apenas a observar, perceber as atitudes, ações humanas, tendo
a liberdade e espontaneidade de descrever com mínimos detalhes, só assim se é
possível achar graça de tanta coisa estapafúrdia e ridícula. E se eu estivesse
nas mesmas situações só com a diferença de serem adultos, velhos, senis,
descrevendo o quotidiano de suas vidas!... Lembrando-lhes as situações e
circunstâncias. Alguns já entupigaitados de tanta cachaça e cerveja, chorando,
esgoelando, pedindo socorro a Deus e Mefistófeles, qualquer um deles serviria
para lhes afagar as tristezas e angústias de nada se poder considerar neles,
perfeitos ângulos obtusos. Seria cena das mais tragicômicas possíveis.
Ganhariam o Prêmio Nobel da Paz por representarem tão bem as desgraças de uma
humanidade que perdeu a máquina condutora, o bom senso. Aliás, digno de
reconhecimento, os primeiros atores a ganharem prêmio tão importante na
história do mundo.
Até mesmo escrevendo, sentado à mesa, fumando cigarro de palha,
entretido com a criação da história – nem digo criação por estar mais
preocupado em descrever as coisas como as vejo, como estão acontecendo, do que
criar com o espírito voltado à beça da mofa. Imagino os leitores, durante a
leitura, vez por outra imaginando-me nestas circunstâncias para escrever a
história. Rindo, rindo, rindo... Terminado o livro, contando a história para os
amigos, muitíssimo engraçada, incentivando-lhes a comprar a obra do asno
Incitatus, obra-prima, com efeito ficará na eternidade. “Incitatus é imortal”.
Passados alguns dias, os efeitos mais que dilacerantes, angústia diante
das mazelas, pitis, chantagens, desumanidades, empáfias, orgulhos... Dias de
tristeza, solidão... O que estaria acontecendo com eles? De repente, viram-se
diante da realidade nua e crua, sem qualquer esperança de algum dia a coisa ser
diferente. “Viver é tirar leite em asno”.
Manoel Ferreira Neto
(OUTUBRO DE 2005)
#RIODEJANEIRO#, 25 DE SETEMBRO DE 2018)
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