#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS INSANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO II - PARTE II
Quem sabe fosse por motivo de não imaginar o corpo se putrificando até
aos ossos, cinzas!? Isto lá é verdade; existem outras verdades com que não
posso imaginar, não possuo nem divagações dispersas na mente. Se alguém
passasse ao lado do túmulo, vendo a inscrição de seu nome, epitáfio, poderia
dizer: “Ele existiu mesmo. Agora existe mais ainda”.
Já ouvi dizer que homem digno de respeito sempre que entra um membro
nalguma academia de letras do Brasil, os ossos sempre remexem na sepultura.
Tendo razão de o fazer. Reviraria os ossos à busca de poder dizer algo, a
língua já se desfez há muito. Perguntar-me-ia em silêncio: “Acaso tive alguma
dúvida de que vivia, existia? Tive e muitas”. Não seria agradável ouvir isto.
Comentara inúmeras vezes com sua mulher, Ragozina Neves:
- Ragó, vou enterrar este asno. Deixar animal deste ser papado pelos
urubus dá pena. Que se torne cinza. Não comento isto com ninguém, só você sabe
deste segredo. Mandarei fazer cruz com o nome que demos, INCITATUS DA FAZENDA
DOS BOIS, entre parentes, asno, para que ninguém pense que ali está os restos
mortais de um ser humano. Se alguém quiser fazer uma oração ao asno Incitatus,
tem toda a liberdade. Finjo que não tenho quase dúvida alguma de este Incitatus
pensar. Se falasse, seria dedo de prosa agradável, conversas sobre os costumes
e hábitos da raça, como é o relacionamento entre os asnos, alguns de teimosia
sem limites, outros flexíveis, isto com agrado de espiga de milho fresca e
saborosa.
Não relinchei? O assunto desde não sei quando seria unicamente a vida de
asno, dos equus asinus, apresentando as adversidades e semelhanças, os
instintos mais profundos. Os homens sempre tiveram esta curiosidade, não? -
isso devido às diferenças claras, os instintos e razões. Não teria paciência de
falar o mesmo – não nasci papagaio, nasci asno.
- Está certo. Não consigo é entender isto de você ter certeza de que
Incitatus pensa. O que prova esta certeza? Nem a ciência consegue provar. É
absurdo. Um asno pensante!... Felizmente é que ninguém em Lágrima dos Insanos
sabe disso. Iria ser tomado por insano. Já pensou se alguém lhe pergunta:
“Então, o que ele pensa?”. Só asno pode saber o que asno pensa. Não me venha
com o lero-lero. Você mesmo sabe disso.
Não tem ele argumentos para ela, não tem condições de discutir.
- Tem razão, sim: se o asno pensa, irá cair na gargalhada, relinchar sem
limites, deitaria no chão e balançaria as patas. Ficaria com vergonha do asno -
não relinchei de volta a sua imaginação e já se explica silenciosamente. De que
ficaria com vergonha? Tudo isso de eu pensar é ridículo, absurdo, Ratto Neves
está com idéia fixa. Tem de rir de si próprio. - Você está certa. O asno vai
cair na relinchada de minhas idiotices. Com o que irei replicar? Com nada. É
ouvir e calar-me. Guardar o momento por toda a eternidade. Você sabe: guardo as
ofensas, humilhações, alegrias e tristezas. Das primeiras gostaria de vingar,
das segundas, agradecer. Com exagero.
Desconversam logo. Há coisas mais importantes para cuidar. Fomá Fomitch
Neves. Dera o nome para o filho influenciado por uma de suas leituras, sei
apenas que é A Aldeia..., há um nome estrangeiro. Isto acontece: contribui com
a cultura.
Conheci um homem em Atenas Atéia, passava por mim todas as manhãs no
ponto de carroça, estava indo comprar pão e leite para a família. Sempre que
dizia o nome de seus pimpolhos, a pessoa olhava Flávio Simplório na cara, por
que colocar nomes tão difíceis? Respondia que o nome do mais velho foi um filme
que assistira Dr. Jivago, autoria de escritor russo, não sei relinchar outra
língua senão a minha, este filme foi feito inspirado nesta obra; o filho de Dr.
Jivago tinha esse nome. Por isso, o nome difícil. O nome do segundo fora dado
devido a uma palavra grega, esta palavra significava em palavras simples “tempo
de Deus”. Explicava o mesmo sempre que dizia o nome dos filhos. Fomá está indo
de mal a pior em Português, o menino é perfeito imbecil, não consegue aprender.
Passa sempre com a mesma nota, a que permite o aluno passar, o que se diz
“passou nas coxas”. Está precisando de aula particular.
- Você já cuidou de arrumar a professora para Fomá Fomitch?
- Já sim. Tem motocicleta, virá a partir de amanhã. Tive de soltar a
nota. Professora cara, mas é a melhor que pude encontrar. Para ensinar perfeito
imbecil tem de ter modos. Sabe, Ragó, tenho vergonha de dizer que dei este nome
ao nosso filho. Disse-me Jacqueline Verçosa que trará livros para lerem juntos,
interpretar, as dificuldades da gramática serão esclarecidas após a leitura; é
um método moderno, pode-se dizer que nasceu ontem. Já pensou se nos disserem:
“Isto é que é acertar na mosca. O personagem é imbecil”. O pai achou o nome
interessante, colocou no filho. E sabia disso. O filho nasceu imbecil na Língua
Portuguesa. Aprende tudo, mas não sabe a língua que tem. Que eu “acertei na
mosca” não tenho qualquer dúvida.
- As aulas serão só de leitura, interpretação... Não é preciso pagar
professores particulares. Lê em casa. É comprar livros. Ratto Neves, Fomá
Fomitch está precisando de gramática. Só não fala “nós vai”, isto também é
ridículo. Mas usar as coisas nos seus devidos lugares não adianta, não sabe.
Professor, aluno, interesses não são responsáveis por ninguém saber coisa
alguma. Ninguém sabe nada porque não vê lucro em conhecer as coisas. Claro que
existem professores responsáveis. Mande um professor fazer uma redação. Não
fará com facilidade. Se fizer, há de se perguntar como é que pôde; mesmo assim
não dando atenção a algumas “cositas”. Lucro, Ratto Neves, é puxar a carroça da
vida em estrada esburacada.
Manoel Ferreira Neto
(SETEMBRO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 08 DE SETEMBRO DE 2018)
Comentários
Postar um comentário