#ALDEIA DE LÁGRIMA DOS ANOS# - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO V - PARTE II
Em Atenas Atéia era diferente... Se todas as coisas aconteceram comigo,
quando puxava carroça morro acima e abaixo, pessoas que fechavam as janelas,
portas, saíam das calçadas, deprimindo-se, com a minha passagem, aqui em
Lágrima dos Insanos seria pior ainda. Iriam se orgulhar bastante, enfim asno
intelectual, novidade sem limites no reino do equus asinus, tido e havido por
todos como tapado até nas fuças, sem qualquer nível de inteligência, instinto
dos mais vulgares e chinfrins. Iria tornar-me atração turística na cidade.
Personalidades da ciência, das letras, filosofia viriam para conhecer-me,
trocar alguns dedos de prosa sobre a situação dos humanos na história da
humanidade, política, economia.
Não. O que desejo mesmo é refletir sobre as coisas da vida e da morte
quieto no canto. Ninguém sabe de onde venho. Jamais tiveram notícias minhas em
Atenas Atéia, os atenienses deram graça a Deus por Lúcifer Pernóstico haver
sumido da cidade. Talvez Lúcio Ferreira tenha adquirido outro asno, continuado
trabalhando. Asno algum é insubstituível. Com certeza, não é mais burro
intelectual, os habitantes tenham modificado a vida completamente. Tantas
transformações ocorreram!...
Afastei os olhos da coisa que estava frente a mim. Ergui o pé para
retirar-me daquele lugar nefasto. De repente, povoou-se de ruídos o deserto
silencioso dos ouvidos. Levantei-me, afastei os mosquitos do pelo. Do solo,
quem sabe passando as sensações por minhas patas, isso não posso afirmar com
categoria, mas a lógica de tudo e de todas as coisas diz que só assim é
provável, cabível de comentário, um gorgolejo semelhante ao que faz a água da
noite, em campos obstruídos.
Não podia ser. Os olhos nublaram-se, não pude reconhecer se se tratava
de homem, melhor ainda, se se tratava da forma de homem, as sensações que fui
tendo no ínterim delas, as vozes humanas no ouvido. Seria outro sintoma da
morte próxima. Precisava acelerar os pensamentos, só assim iria ainda poder
mergulhar fundo nos instintos de equus asinus, deixar a contribuição para a
humanidade. Só assim iria poder superar a condição, deixar de ser apenas animal
de tração e carga.
O ruído acabou por se tornar voz humana e humana palavra. A voz dizia:
- Lúcifer Pernóstico, só você conhece o meu mistério. Fale, asno de uma
figa, fale logo qual é ele para mudar a minha condição? – voz rouca, ofegante,
as chamas do inferno romperam as entranhas, o sofrimento por inteiro se revelou
de só vez. Fracasso, remorso, culpa, fraqueza... Isto não é lista telefônica,
apenas insinuo existirem outras e mais outras.
Resta pouco para deitar no chão e começar a grunhir. Para quem não sabe
o que grunhe é porco. Existe termo específico para isto, mas me esqueceu de
todo. Ah, quem me dera, se neste tempo de eterna solidão, não pudesse deitar-me
no chão e grunhir tudo o que me vai dentro, rasgar o verbo de todos os enigmas
da vida e da morte, de todas as mazelas e achaques de asno velho, próximo à
morte, desejando a todo custo garantir a imortalidade através de pensamentos e
idéias sobre a raça humana, já que da sua sabe tudo, nascido para puxar carroça
morro acima, morro abaixo.
Após ouvir a piada que Guido Neves contara ao seu pai, mãe, Fomá
Fomitch, num feriado, enquanto tomavam cerveja, guaranás, reunião de família,
comecei a pensar que estavam começando a acontecer coisas. Não me lembra de
quantas aconteceram, mas era sinal de presentes que estou ganhando com tudo o
que está acontecendo.
Manoel Ferreira Neto
(SETEMBRO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 12 DE SETEMBRO DE 2018)
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