#ALDEIA DE LAGRIMA DOS INSANOS - III TOMO #UTOPIA DO ASNO NO SERTÃO MINEIRO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO III - PARTE III


A cidade inteira conhecia Josefina-do-buxo. Ratto Neves é que conseguiu ser alguma coisa na vida. Começou a trabalhar como capataz da Fazenda dos Bois, após um ano de fazer corrida com o carrinho de mão, levando malas e mochilas da rodoviária à casa dos clientes. Conseguiu fazer pezinho-de-meia e se tornou proprietário da fazenda. Só ele mesmo. Gregório se tornou cachaceiro, mulherengo, jogador... Perfeito caguincho. Morreu aos dezesseis anos vítima de assassinato, discussão na porta de um botequim, três tiros. Nada fora feito quanto ao assassinato, não tinha a mãe condições de pagar advogado.


Nove horas começava a matança dos bois no matadouro. Assistia, encarrapitado na porteira do curral. Havia um labirinto por onde os bois eram encaminhados, um atrás do outro. Ao passarem, um a um, uma espécie de guilhotina descia, cepava a cabeça, os funcionários puxavam o corpo, começavam o trabalho de destrinçamento. Tinha calafrios por isto assistir, mas procurava não dar asas, tinha de ser frio, enfim era animal e não gente. José Tameirão, o responsável pelo matadouro, afeiçoou-se a ele, prometendo-lhe que iria arrumar modo de trabalhar, não precisar sair com bacia na cabeça vendendo buxos. Conhecia muitos fazendeiros, talvez pudesse arrumar-lhe emprego como ajudante.


Conversara primeiro com açougueiro, aprenderia o ofício. Estava arrumado, mas Ratto Neves não quis aceitar, não gostava de Afonso Loureiro. Viu-o dar tiro num urubu que comia os restos mortais dos bois sem quê nem porquê. Se a ave é a “carniceira-da-humanidade” deixasse-a viver, fazia bem aos homens. O filho estava ao seu lado. Fez aquilo para mostrar poder, podia decidir sobre a vida não só de bois, mas também das aves. Podia até decidir a vida de ser humano. Homem ignorante. Aí é que José Tameirão conversou com o proprietário da fazenda, Raimundo Baixinho.


No crepúsculo, enquanto pasto, Ratto Neves e Ragozina, sentados numa tora de madeira, perto do Rio das Pulgas, conta histórias de família, o autoritarismo da mãe, prepotente, orgulhosa, dominadora. Se um dos filhos cometessem algum delito, até por causa de coisas as mais estapafúrdias e inocentes, o cinto comia solto. Dera surra em Ratto Neves de duas horas contadas no relógio. Não fosse o vizinho ter socorrido, teria morrido de tanto apanhar.


Saíra ele para brincar com o primo Ewérton Aureliano. Aureliano era de amargar, fazia coisas que Deus duvidava o seu filho pudesse. Sofria o pão que o diabo amassou com o rabo nas mãos do pai. Adorava caçar passarinhos, matar calango de espingarda. Aliás, ficou-lhe o cognome de “Calango”. Adulto, numa boite de prostíbulo, alguém metera a cara com a amante, deu quatro tiros. Só um acertou. Fatal. Condenado a dois anos de cadeia. Saindo, tornou-se artesão. Suas peças são exemplos de beleza. Não tenho conhecimento das mazelas e picuinhas da sociedade lacrimense dos insanos, as notícias que são estampadas nas manchetes dos tablóides de quinze em quinze dias, de mês em mês. Celeste Ímpio lê as notícias. Comentara com Ragozina Neves que escritor importante escreveu matéria para elogiar o trabalho de Aureliano. Homenagem mais que merecedora. Além de um grande artesão, um homem por inteiro gentil, honesto, amigo.


No forró, um dos mais importantes eventos de nossa aldeia de Lágrima dos Insanos, toda a família Neves estivera presente nos três dias, almoçando na barraquinha de um ex-prefeito. Andando com Ratto Neves, viu Aureliano expondo os seus trabalhos. Aproximou-se, tendo em vista estar ele de costa, conversando com cliente, apanhou de uma peça, colocando-a no bolso de seu paletó, virou as costas. O cliente dissera a Aureliano que alguém estava roubando peça sua. Sem se virar, respondeu: “Este não leva. É o primo Ratto Neves”. Como é que soubera? Isto é que era intuição. Sim e não. Intuição sim, mas a amizade enorme entre os dois exerceu forte influência.


No dia anterior, à noite, Guido Neves encontrou-se com Aureliano na Praça do Fórum, onde expunha os trabalhos, estando Giselle Ortega, artesã, trabalhos em capa de cadernos para crianças e adolescentes. Conversavam sobre o nível e condições de ensino em Lágrima dos Insanos. Não diria Giselle Ortega que os professores todos não têm capacidade, há quem tenha. Por exemplo, Idólia Penacho, conhecedora profunda da Literatura Brasileira, mas de caráter e personalidade insuportáveis. Só os imbecis não podiam entrar em polêmica com ela. Os inteligentes sim, até para se defenderem, darem valor aos conhecidos adquiridos e vividos, tinham eles de polemizar com as cretinices que dizia Idólia Penacho. Guido ficara calado, enquanto conversavam. Terminado o assunto, conversaram um pouco sobre a sua arte de artesão. Para ele que vivia caçando passarinho, calango, era ou não difícil esculpir um deles na madeira. Exemplos de beleza. Conversaram pouco tempo. Guido teria de ir almoçar com a família num restaurante próximo ao cemitério de Lágrima dos Insanos, aliás, de frente.


Decidiram pescar na lagoa não muito longe de onde me encontro eu, deitado na grama. Ratto Neves descuidou-se. Aureliano pegou a chinela e atirou na lagoa. Ratto Neves entrou na água. Não sabia nadar. O lugar era fundo. Quase se afogou. Se não fosse o primo ter socorrido a tempo, teria morrido. Alguém conhecido vira de longe o acontecimento, dizendo a Josefina-do-buxo. Apanhou duas horas seguidas por haver pulado na lagoa, se não sabia nadar, por cair na lábia do primo.


Não aprendia com as lições. Estava sempre envolvido com as coisas. Estavam brincando, Ratto Neves e Aureliano, de atirar com espingarda de chumbinho no bambu fincado no Rio das Pulgas. Ratto Neves errou o alvo e acertou a perna de Aureliano que se encontrava dentro dágua a pouca distância do bambu. Josefina-do-buxo quebrou a vara de bambu nas costas de Ratto Neves. Ficara dias sem poder dormir de costas, encostar-se na cadeira, na carteira da escola. Suas costas são cheias de sinais. Continuou amigo do primo, gosta muito dele. Aliás, perdeu a sensibilidade nas costas. Numa noite de intimidade com Ragozina, voltou a sentir. Para ele, fora o momento mais feliz da vida, voltara a ter sensibilidade nas costas. Amou-a ainda mais.
Aprendeu a troco de chibatadas a ser vítima de tudo, vitima até da própria vida, nascera parecidíssimo com rato de esgoto.
Manoel Ferreira Neto
(SETEMBRO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 09 DE SETEMBRO DE 2018)


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