**NÁUSEA DO VAZIO/VAZIO DA NÁUSEA - XII PARTE** - Manoel Ferreira
Acordei hoje pela manhã sentindo-me um pouco feliz. E essa felicidade
tem uma pequena razão. Há dias venho tendo pesadelos ininteligíveis, ruas
desertas, lugares muito escuros. Acordo e não os sei descrever. A crise abriu o
meu inconsciente, escancarou-o: flui livremente. Tudo o que andei guardando a
sete chaves na vida agora está sendo revelado, problemas, fracassos,
frustrações, sonhos não realizados, medos. Quer que verbalize, As coisas me
sejam conscientes. Tenho de verbalizar e canalizar. E eu que sempre
negligenciei a inconsciência, vejo-me agora pura inconsciência, vejo-me agora
puras trevas.
Sonhei com Berenice. E sei como tudo aconteceu no sonho.
- Que você tem? que há com você, Berenice? - disse-lhe, depois de voltar
a mim, disperso que estava olhando uma fresta da veneziana do quarto dela,
conservando-a estreitamente abraçada a mim - Que tem, Berenice? Que tem, meu
amor querido?
Berenice soluçava suavemente, olhos baixos, o rosto escondido no meu
peito. Durante algum tempo não foi capaz de falar, agitada por um tremor
nervoso.
- Não sei - disse ela, por fim, sufocada pelas lágrimas - nao sei -
repetiu com voz quase incompreensível - Não lembro como entrei no seu quarto.
Estreitou-se ainda mais fortemente contra mim e, como obrigada por uma
influência irresistível, beijou-me os ombros, as mãos, o peito; depois, vencida
pelo desespero, deixou-se cair, de joelhos, ocultou o rosto nas mãos e apoiou a
cabeça nos meus joelhos.
Apressei-me em levantá-la, fi-la sentar-se perto. O rosto de Berenice
continuava inundado como de vergonha, e, com os olhos, suplicava-me que não a
fitasse. Um sorriso forçado saia-lhe dos lábios; parecia a ponto de sucumbir a
uma nova crise de desespero. Os terrores lhe voltavam; agora afastava-me, com
desconfiança, evitava olhar-me e a todas as perguntas respondia, à meia voz,
cabeça baixa.
- Teve talvez um pesadelo, benzinho? perguntei-lhe - Sonhou?
- Não, não sonhei - respondeu-me, dominando a custo a agitação - nem
pude dormir.
- Está com medo de quê?
- Não, não estou com medo.
- Já aconteceu isto? - estremeceu e estreitou-se contra mim, como uma
criança.
A fisionomia exprimia a mais profunda estranheza. Quis falar, mas
desistiu logo e baixou os olhos. Ruborizou-se, os olhos faiscavam ainda mais
através das lágrimas que perlavam as pestanas. Com uma espécie de malícia,
misturada de vergonha, lançou-me um olhar. E novamente baixou os olhos.
Acendi um cigarro. Estava muito tenso. Queria ajudá-la, mas não via como
fazê-lo, ademais estava surpreso - a surpresa talvez seja porque Berenice não
tem crises alguma, sempre alegre, feliz, ativa. E estava tendo uma crise
nervosa.
Levantou os olhos. À sua primeira alegria substituiu-se uma melancolia
desesperada. Novamente foi presa de uma tal imaginação, que uma piedade imensa,
a piedade irracional excitada pelas desgraças desconhecidas, apossou-se dela.
- Escute o que vou lhe dizer - disse ela, apanhando as minhas mãos e
esforçando-se por reprimir os soluços escute, escute, minha alegria! Domine o
coraçao, ame-me, mas de outro modo. Você não está bem. Não me disse o que
aconteceu. Sempre o amarei como agora. Amá-lo-ei porque você é puro, claro,
transparente; porque, desde que o conheci, compreendi que você é o amor de
minha vida. Seus olhos, quando você me olha, são amáveis e dizem tudo. Quando
seus olhos falam, sei tudo o que se passa dentro de você. Por isso é que
quisera dar-lhe, por seu amor, minha vida e a querida liberdade, pois é uma
felicidade sem tamanho ser objeto de amor daquele que habita meu coração.
Quis falar mais alguma coisa, olhou-me, pôs a mão no meu ombro e, por
fim, esgotada, caiu sobre o meu peito. A voz morreu-lhe num soluço apaixonado.
O seio agitava-se-lhe, o rosto irradiava como a estrela da tarde.
Acordei banhado em suor. Fui ao banheiro, lavei o rosto. O sonho estava
todo na minha cabeça. Olhei-me no espelho. Distingui um sorriso ainda que um
pouco distante. Depois de alguns dias de pesadelo, sem saber descrevê-los, e
agora estava presente e muito forte. Saí do banheiro. Abri a porta. Estava uma
noite de clima agradável, friozinho delicioso. Sentei-me na rampa. Passei a
noite com o sonho dentro em mim, procurando entender porque sonhara com
Berenice. Talvez sentimento de culpa por ainda não lhe haver contado sobre a
minha crise. Encontramo-nos ontem à noite, fomos a um restaurante comer uma
porção de carne de sol com mandioca, ama de paixão este prato, tomar cerveja.
Às vezes, olhava-me com olhos interrogativos como quem diz: "Sérgio, o que
está acontecendo com você? Houve alguma coisa". Percebia e continuava a
conversar.
Manoel Ferreira Neto.
(29 de março de 2016)
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