**NÁUSEA DO VAZIO/VAZIO DA NÁUSEA - XXI PARTE** - Manoel Ferreira
O sol açoitava com um feixe de raios de ouro as vidraças do quarto
quando acordei, por volta das oito horas da manhã. Sensação deliciosa de calma,
de repouso, de bem-estar, acariciava-me os membros.
A porta do quarto abriu-se. Era Berenice. Cabelos molhados - havia
acabado de tomar banho -, estava de penoir cinza, alegre, o rostinho
resplandecia alegria.
- Como dorme! - exclamou, sentando-se ao meu lado, beijando-me - Você
está bem, amor?
Primeira manhã após retornar do hospital.
- Estou bem sim, amorzinho.
- Ainda estou de férias. Vou cuidar de você. Sérgio, você precisa de
muito repouso. Ouviu o médico falar para não sobrecarregar a mente. Isto
significa que deve ficar uns dias sem escrever.
- Ah, não... Isso não...
- Sim senhor... Uns dias não vão lhe custar muito.
- No final da tarde, algumas palavras...
- Dia ou outro deixo sim... Você ama o meu jardim. Tem aquela mesa de
mármore lá. Escrever sob o contato da natureza, das flores, o ventinho ameno
deve ser muito bom. Costumo fazer os meus trabalhos da faculdade lá. Aprecio
bastante. Mas criar literatura é muito diferente.
- Está bem, aceito...
- Você é dócil, Sérgio - deu uma risadinha, beijou-me os lábios - Só é
preciso saber conversar com você. Benzinho, não faça mais isto comigo, por
favor! Fiquei completamente desnorteada, quando você caiu de rosto no prato de
comida. Dei um pulo da mesa nem sei como. Levantei você. Estava desmaiado.
Papai me ajudou a levar você para o quarto. Deitamos você na cama. Esperamos
uns dez minutos para você acordar do desmaio. Levamos você para o hospital às
pressas. Não parava de chorar com a sua cabeça no meu colo, passando a mão no
seu rosto. Esperava que acordasse com o carinho. Nada. No hospital, direto para
o CTI, princípio de AVC. E você sabe o que causa isto, não sabe?
- Preocupações, tensões... Não se esqueça, Benzinho. Sou psicólogo.
- E não se cuida! Isso é que é.
- Está bem agora. É o que importa. Mas precisa ser cuidado. Ah, Sérgio,
vou trazer você num "cortado" só. Vai ver comigo. Entendo que um
homem sozinho não sabe se cuidar. E você, além de ser muito disperso, não liga.
Está escrevendo é o quanto basta. E a sua vida, como fica ela? Você morre as
letras ficam aí.
- Arrumei uma babá - disse-o, dando uma gargalhada - Meu Deus!... Nessa
idade...
- Sim, arrumou... E uma babá que o ama muito, muito, muito... Amor, vou
arrumar o seu café da manhã. Tome um banho. Fará bem a você. Não tranque a
porta do banheiro. Por favor...
- Está bem... Estava mesmo pensando em tomar banho. Se não o faço de
manhã, meu dia é verdadeiramente um lixo.
Berenice levantou-se da cama. Foi até o armário embutido, retirou um
penoir de dentro, penoir de seu pai. Entregou-lhe a Sérgio.
- Sabonete e toalha tem lá no banheiro. Já está arrumado para o seu
banho.
- Está bem, meu amor... Obrigado.
Berenice foi arrumar o café da manhã de Sérgio. Apesar de ainda
preocupada comigo, estava feliz. Meu Deus, como uma mulher pode amar um homem
desse modo!
Abri a torneira do chuveiro.
Então, começa para mim uma vida nova.
Às vezes, num estado de semi-inconsciência interminável - durante os
dias após a crise de vazio -, via-me condenado a viver numa espécie de sonho
interminável, singular pesadelo de lutas estéreis. Espantado, tentava reagir
contra aquela fatalidade, mas, no momento mais desesperado de uma luta
encarniçada, um poder desconhecido derrubava-me de novo. Sensações
indescritíveis. Voltava a sentir que se desvanecia outra vez um abismo de
escuridão profunda, sem limites, sem nada diante de mim. E precipitava-me,
gritando interiormente - ouvia os meus gritos - de angústia e de desespero. O
que sentia por Berenice era muito forte e muito presente. E quanto mais lutava
contra estes sentimentos mais e mais as manifestações psíquicas, emocionais se
revelavam.Outras vezes, pelo contrário, eram instantes de felicidade. Meu corpo
adquiria uma vivacidade enorme; a hora atual só era alegria e vitoria,
acordado, sonhava uma felicidade inaudita. Uma esperança inefável vivifica a
alma como o orvalho; quiseramos chorar de alegria, e, se bem o organismo seja
vencido por tantas sensações extremas, enquanto sintamos o tecido da vida
desgarrar-se, regozijamo-nos de uma regeneração e de uma ressurreição.
Abre-se a porta do banheiro.
- Benzinho, você está bem?
- Estou, meu amor.
- Fiquei preocupada. Estava demorando no banho.
- Estou aqui sentado debaixo da água, deixando-a cair em mim. Sabia que,
se você deixar a água penetrar-lhe a carne, é uma maravilha para as tensões do
corpo, psíquicas. Amo de paixão a água. Faz-me muito bem.
- Vou deixar você terminar seu banho.
- Já estou de saída, meu amor.
- O nosso café da manhã já está na mesa.
- Sim, querida...
Berenice fechou a porta do banheiro. Fechei a torneira. Enxuguei-me na
toalha. Vesti o penoir. Sai.
Manoel Ferreira Neto.
(31 de março de 2016)
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