**O PIOR CEGO É QUEM NÃO QUER ENXERGAR** - Manoel Ferreira
Embora eu possa, tu não podes. Mesmo que possas, jamais serás capaz de
andar no meu sapato. Possa servir-te, mas o desprazer ou o conforto não será de
tua índole.
A natureza tem seus caprichos. O maior capricho dela é haver uma flor
que fede, fede muito, catinga de coco, quando as flores cheiram deliciosamente.
A cinco passos dela, o estômago embrulha, a náusea, o juca é chamado sem dó nem
piedade. Esta única flor fedorenta é a responsável pela perfeição da natureza,
é o não que faltava ao sim. São muitas as cores das rosas, existe também a rosa
preta. Preto é ausência de cor. Por que à rosa não poderia faltar a cor,
ausentar-lhe a cor? A catinga da flor, quando todas tem seus perfumes
peculiares e particulares, é a contradição da natureza, o não do absoluto; o
preto da rosa, quando as cores de todas as outras são a imagem da beleza e do
belo, é a dialética da natureza.
Sou esta flor catinguenta, quando quero. Não exalo fedor pelas glândulas
sudoríparas, a língua cria palavras que dicionário algum irá registrar mesmo
depois da consumação dos tempos. É só experimentar pisar nos meus calos secos.
Através das palavras, acabo com as raças, sentirão a catinga delas até debaixo
da terra no processo de decomposição.
Só conheço um homem que rasgava verbos, Machado de Assis. A sociedade
carioca ria e gargalhava de orelha a orelha, não porque não entendia as
entrelinhas de suas crônicas, não era tola, ria e gargalhava a troco de nada,
sem quê nem porquê, mas porque não tinha res-posta para as críticas lavadas a
critério e rigor. Quanto a ele, não sei o que responderia no concernente aos
sapos secos que a sociedade carioca engoliu, o motivo de não saber responder às
ironias, sarcasmos, cinismos. Não se escorraça um Machado de Assis: as coisas
ficam ainda mais pretas. Fazia ele a cultura literária e filosófica de seu
tempo, era a rosa branca que ornamentava todas as mesas do mundo, especialmente
do Rio de Janeiro. Muitos o circundavam, nas barras da calça, nos punhos da
camisa, até no pincenez pessoas segurando. Relevaram as suas rebeldias e
irreverências. Por mim, se me perguntarem, digo: "As palavras são minhas
cúmplices, álibis, capachas. Defendem-me livremente" Nunca precisei de
escarafunchar o vernáculo para lavar as roupas sujas. As palavras lavam por
mim. E elas, quando querem, fedem tanto que urubus fazem barra nas asas e
somem, riscam-se do espaço celeste.
Moro em cidade do interior, cidade de cem mil habitantes. Deixei-a fedendo
até no Olimpo dos Deuses por me negligenciarem, segui meus passos e não senti
qualquer fedor. Alguém dissera que era um homem de inteligência inestimável,
mas cuspi no prato da vida. Respondi-lhe: "Dinheiro inestimável você tem,
acha-se grande, mas garçons de botequim vivem chamando táxi para levá-lo para
casa, após duas garrafas de Jack Daniel´s e alguns chopps; sua filha foi
putinha de universidade". Carregando sua pasta de empresário de
multinacional suiça bem sucedido, muda de calçada quando me vê.
Num botequim, quando fui pagar a nota, disseram-me que eu era louco.
Resposta no riste da língua: "Sou louco, mas nunca levei meu pai ao
suicídio por causa de dívidas suas. Não é esta sua história?" Quatro
amigos me cercaram, jogaram-me dentro de um carro, levaram-me para casa. Nada
aconteceu comigo. Cometera ele assassinato, fora condenado, cumpriu a pena, foi
libertado, morreu de câncer alguns poucos anos após sua libertação, jamais
ombreou comigo nas ruas.
Não sou português de origem, mas não me confrontem, garanto que a
carniça vai feder.
Sempre digo: "Se algum dia for vítima de desaforo, não volto para
casa". Uai, não é que è? Palavras não sofrem desaforos, humilhações, o
autor delas pode sofrer todos, esconder-se debaixo da terra de tanta tristeza e
angústia. Nada atinge as palavras. São supremas e divinas por si mesmas. Sou
privilegiado com o dom e talento das palavras, por que não lhes hei de
homenagear com o riste das respostas?" A amizade, o amor são os grandes
tesouros da vida, não haja duvidar. Acrescento as palavras como outro tesouro.
O pior cego é quem não quer enxergar.
Manoel Ferreira Neto.
(15 de março de 2016)
Comentários
Postar um comentário