**APOCALIPSE DO PECADO** - Manoel Ferreira
A verdade é que deitaram ao Nada a bagagem metafísica, e dentro de pouco
estavam acabados. Iam-se às tradições morais, éticas, cristãs, que não serviam
nem mesmo à epoca em que foram estabelecidas, juramentadas; iam-se às idéias e
utopias, mas elas, como as tradições, só davam brilho na mente, antes sombria,
entardecida, não podiam nem a troco de inteligência e sensibilidade mostrar
eficiência para futurais horizontes, puros arrebiques, mente arrebicada de
idéias e utopias é simplesmente tenda do diabo elucubrando o pecado.
Iam-se lá, iam-se acolá à cata de alguma explicação, inda que tosca,
para as ausências em todos os níveis de verdades. Desde que o clérigo Bentinho
Soares dissera que pecados e pecadilhos não deveriam ser confessados somente
com os clérigos no genuflexório, os homens precisavam entender que os pecados
tinham de ser compartilhados entre si, mutuamente, só se viam todos dizendo a
céu aberto nas esquinas, praças públicas, botequins, lojas..., confessando os
pecados, rasgando os verbos, a imprensa aproveitando da situação para publicar
tudo que era confessado. Que mar de pecados e pecadilhos, tão extenso que a
velha largou o seu arco no chão e participou sua mudança para fora do mundo!
Quê podridão. Quando a vida pecaminosa de todos ultrapassou os limites do
público e notório, sentiram todos um alívio, friozinho gostoso na medula
espinhal. Esvaziaram-se publicamente. O pior pecado é o pecado publicado, e o
de todos estavam nas páginas dos tablóides com o nome assinado pelos pecadores
mesmos. Riam-se de tanta alegria, felicidade. Os êxtases passaram todos, o
sentimento de vergonha, ridículo, culpas, remorsos, angústias e tristezas,
houve alguns suicídios por desespero de causa. E tudo começou a desmoronar,
valores, princípios, honra, dignidade, a coisa afetou a economia, a política, o
social. Tudo porque os pecados deviam ser compartilhados publicamente.
Não se viam outra coisa senão a comunidade inteira andando no mundo do
além, no mundo da lua à cata de re-colher e a-colher os pecados e pecadilhos,
retornarem à vida de trevas existenciais e con-tingentes.
Parado à porta de uma barbearia, depois de escanhoar bem a barba, quase
até tirando a pele do rosto, um homem cerrou os olhos por alguns instantes,
abriu-os, passou pela testa o lenço que trazia fechado na mão, em forma de
bolo, e gritou a plenos pulmões que o padre Bentinho havia professado o
Apocalipse do Pecado, e como todos seguiram à risca os seus conselhos,
confessando tudo publicamente, ainda restava algo que deveria acontecer tão
logo não restasse nada mais a ser confessado. Uma multidão enorme se formou à
frente da barbearia para ouvir do homem o que restava fazer depois dos pecados
confessados.
Era muito simples: todos se desfizessem de seus bens materiais, nada
mais possuíssem na vida, entregassem ao destino da morte nus e crus, nada
ficaria no mundo.
Filas e mais filas nos bancos, clientes retirando as economias e tocando
fogo nelas em praça pública, retirando tudo da casa e jogando na rua, caminhões
da prefeitura recolhendo e jogando no lixão. Adveio daí a fome, a miséria
deslavada, o prefeito declarou não calamidade pública, mas calamidade da
miséria, pedindo a quem de todas as cidades da redondeza e do pais
encarecidamente pudesse ajudar que enviasse comida para o povo esfomeado. Ninguém
quis enviar uma côdea de pão: donde já se viu dispor dos bens, tocar fogo em
praça pública nas economias financeiras.
E o povo faminto foi saindo, foi saindo, foi saindo, pegando a estrada.
Nada restou na cidade senão o físico.
Deixaram na entrada da cidade uma placa de madeira com a seguinte frase:
"A arca entrou vazia em Jerusalém; o pequeno nasceu morto". Até hoje
ninguém sabe explicar o porquê desta frase. É um mistério.
Manoel Ferreira Neto.
(15 de março de 2016)
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