**ALDEIA DE GATO ESCALDADO** - Manoel Ferreira
Quem mora na aldeia conhece os caboclos.
Sem inspiração para este adágio gaúcho, talvez por ser eu bicho do mato,
preguiçoso, gosto de ficar deitado na rede, bem distante das pessoas,
infernizam-me com conversas para boi dormir, fofocas e suas adjacências,
capachos que se amarram, acorrentam-se, algemam-se às saias dos outros, em nome
de uma defesa, sabendo bulhufas das coisas acontecidas, aquelas que tomam as
dores dos outros.
Aqui na Aldeia de Gato Escaldado não há quem saiba do gato que cruzou a
estrada, passou por debaixo da escalda, no fundo azul da noite da floresta a
lua iluminou a dança, a roda, a festa. Não sabem que a vida precede a morte.
Como disse uma amiga: "Odeio pessoas que se sentem grandes. Gosto de
pessoas simples". Respondi-lhe: "Grande é muito extenso, amiga. Não
sabem disso. O sentimento de grandeza sempre foi para esconder, envelar a
pequenez."
A vida alheia é o assunto de todos os instantes, lerem o tablóide dos
colunáveis, só colaboradores imbecis, providos de só instintos da era lascada.
E quando se metem a escrever poemas nestes tablóides: um é sempre maior, mais
importante que o outro, e os poemas mesmos não mostram qualquer importância.
Não dou bom dia a "cabalos", não hasteio bandeiras do riso de orelha
a orelha, sempre em silêncio. Julgam-me orgulhoso, coronel de bota de cano
longo e sombrero, o que se acha o deus.
Pela manhã, quando saio de casa para comprar pão, leite e cigarros, a
mulher recomenda: "Ande sempre de cabeça baixa, não olhe de soslaio para
lugar algum. De preferência na sombra". Todo dia ela fala a mesma coisa,
sabe que não gosto de conversa, mas a cada dia gosto de seu jeito de se
preocupar comigo. Não cumprimento ninguém nem com reverência de cabeça, não
respondo a cumprimentos.E quando vou passando nas ruas com as sacolinhas nas
mãos, apontam-me, sorriem, fazem até gestos obscenos, a caboclada não sabe que
de cabeça baixa, olhos pregados no chão, enxergo tudo nitidamente. Certa vez
comentei com uma amiga cega de nascença: "O deficiente visual enxerga
muito mais que as pessoas que têm a visão, porque enxergam com a
sensibilidade" Enxergo com a sensibilidade. Perfeitos orelhas em pé.
Costumo dizer à minha mulher que nesta Aldeia do Gato Escaldado os caboclos
nasceram ao contrário: cabeça no lugar do rabo, rabo na cabeça: "Só mesmo
você, meu senhor, para assim pensar"
Sou mudo, surdo. Em aldeia de cegos, quem enxerga apenas a ponta do
nariz é escravagista. Em aldeia de surdos, quem ouve o sibilo de ventos, os
sons do inaudito é o Sheik do Deserto. Certa vez dissera que nossa aldeia era
dos quatro "p", puta, padre, pederastas e políticos, quiseram amputar
a minha língua, só não o fizeram porque a ciência da amputação não estava
desenvolvida, sem pedigree de progresso. Meu Deus! O tablóide local publicou
matéria dizendo que estava eu sofrendo de desatino existencial, mas o
editor-chefe tinha o hábito de tirar leite em cavalo. Convidei minha mulher
para jantarmos no restaurante dos colunáveis, produzi-me à categoria: calça
social preta, camisa vinho forte de seda, paletó, bengala de cabo de prata,
boina preta russa. Minha mulher de vestido branco longo, chapéu feminino à
francesa, leque devido ao calor intenso daquela noite. O editor-chefe estava de
calça jeans toda remendada, tênis sujo, barba por fazer, cabelos desgrenhados,
camisa encardida, além das olheiras roxas de tanta cachaçada, andando às
capengas devido à gota. Os colunáveis seguindo o layout de cada um. Estavam
reunidos para discutirem o que fazer com um Acadêmico que havia brigado com o
Presidente da Academia de Letras, fundado outra Academia, discutiam em todas as
mesas como iriam acabar com a raça dele.
Pedimos um churrasco de costela assada no angico, qual amigo dos pampas
me havia sugerido, o melhor vinho. No outro dia, os colunáveis e os caboclos
disseram que o desatino existencial em que estava eu, dele sofria, era por ser
amigo de quem havia brigado com o presidente emérito da academia e aberto outra
Academia. A coisa era justamente esta: todos em uníssono resolveram afastar
todos os amigos do acadêmico, inclusive eu quem poucas relações tinha com ele.
Uma coisa é certa: mais uma vez me conscientizei de que quem mora na aldeia
conhece os caboclos.
Manoel Ferreira Neto.
(15 de março de 2016)
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