SOU A VOZ DA VIDA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PSICANÁLISE DA AUSÊNCIA
EPÍGRAFE:
"... a noção de existência pressupõe a
ausência e, portanto, articula-se à noção de sujeito, como implicada na
formulação lacaniana sobre o traço unário."
----
Rouxinóis em colóquios a intervalos, e ouço como
voam sobressaltados de um lugar a outro. Um rouxinol tentou instalar-se numa
folha de mangabeira num terreno baldio frente à minha residência, e, quando saí
à porta, ouvi que se mudara para além, numa antena de televisão, onde trinara
uma vez e calara-se, igualmente em expectativa. De que estava ele à espera?
----
Era em vão que procurava acalmar-me: esperava e
desejava algo, e não sabia, de antemão e revezes, se seria realizado, até cria
que havia possibilidade de não o ser, por outras razões muito diferentes da que
estava a imaginar; e isto me exasperava sobremaneira, uma tristeza muito
profunda perpassava-me as entranhas, necessitando de algo que me despertasse a
atenção para a vida, para as coisas, para o mundo, enfim, para toda a
eternidade.
----
Ao mármore, pastas, sob o mármore, pasto serás,
sobre o mármore, quanto tempo, não mais sendo... quanto tempo, sob o sol,
ficarás?
----
Entre mármore, és, foste, serás: Com ele, por ele,
nele, Os Extremos dos matizes Esgotaste e esgotarás, Mesmo que in-vertas,
Per-vertas, con-vertas... A ordem natural das coisas...
----
Decorando-te a noite o dia e enfeitando-se o dia a
noite.
----
VERNEINUNG. - “Ferirei o Pastor e as ovelhas se
dispersarão”. - Ainda que todos se escandalizem de ti, eu nunca me
escandalizarei... - “Em verdade, eu te digo que, nesta mesma noite, antes que o
galo cante, três vezes, me negarás”. - Ainda que me seja necessário morrer
contigo, de modo algum te negarei... “E, da mesma forma, diziam todos, também!”
----
Querendo negar, não negou: Verneinung.
No clímax da saudade alegria não há, prazer não há,
felicidade não há, não há sequer miríades de ínfimas alegrias. Não há pecados,
nem recados.
----
Sem querer negar, negou: verleugnung.
No clímax da saudade longínqua, num lugar que não
há, sem distância se estendendo, se esconde a razão da saudade em espaços não
conhecidos, sabidos.
----
No entretanto, na ausência de vento, a nuvem desce
cada vez mais; tudo se torna mais quieto, mais cheiroso, um cheiro de mato, de
serras, de terra, e de repente cai uma gota e como salta sobre a vidraça da
sala de estar, onde fumo um cigarro.
----
O que é isto? Será, de verdade, a voz da vida que
me questiona. Talvez não. E a voz interior responde-me: “... sim, é verdade,
sou a voz da vida...” Seja sim a voz da vida, gostaria que me respondesse a uma
única questão que me venho fazendo desde que me entendo por um indivíduo.
Responde-me: para que o sofrimento? Olhando-me de soslaio, um sorriso nos
lábios, as faces límpidas, dir-me-ia “...à toa, sem finalidade...”. Só poderia
ser ironia, sarcasmo, cinismo da parte da vida, com certeza estava a fazer
menos de minha inteligência, um destes pitis de homens que estão prontos e
acabados para qualquer eventualidade, para as grandes coisas, mas em se
tratando das pequenas são uns fracos e covardes, sabendo de antemão que a
resposta não poderia ser outra, a vida é à toa...
----
Dolmens, menires, cavernas abrigavam o homem
primevo. O civilizado erigiu seu teto, de variada forma, palácios,
arranha-céus...
----
Valia-se o primevo da água do mar, do lago, da
lagoa, do rio, do arroio, da catarata, da cascata, da bica. O civilizado trouxe
a água para a sua casa... Aquele que come do fruto do conhecimento, aquele que
seja saciar a sua sede do saber é sempre expulso de algum paraíso.
----
Lá fora, de dia, arde o sol. De noite, a lua e as
estrelas, Com sua vacilante luz. O civilizado trouxe a luz para a sua casa...
----
Ao amanhecer do devir distintas pétalas brotarão
flores selváticas nas sêmitas e trilhos por onde contundir...
#riodejaneiro#, 18 de outubro de 2019#
Comentários
Postar um comentário