ACOCORADO EM MISÉRIAS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Estou só. Habito um mundo de brancura e de
silêncio, a solidão de um homem sozinho que tem de reconstruir o mundo, quando
tudo tiver regressado ao princípio de tudo, no cenário branco inicial da
pureza.
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Passam algumas bicicletas, homens debruçados sobre
o guidon. Um grupo de jovens solitários, melancólicos, sonolentos, passam
carregando enxadas, depois duas mulheres jovens, pedalando devagar, alheadas,
as bicicletas balançando desajeitadas porque as moças estão com sono. Parece
que as pessoas, como as ruas, se tornam transparentes e fluidas, pois junto a
elas, atrás delas, entre elas pairam os mortos. Por detrás de edifícios em
ruínas, erguem-se os contornos e formas da cidade que será ainda reconstruída.
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A brancura das nuvens se confunde com a brancura do
silêncio. Choro de alegria, prometi-me não o fazer estivesse triste ou
desconsolado, desesperançado ou deprimido. Os sinos bradam para o vazio do
mundo. Espero que me retornem ao ventre, acocorado em miséria sobre o lume que
se extingue. Cântico dos anjos da anunciação!... Cântico dos anjos das trevas e
do desastre!... Numa espécie de calendário interior, os acontecimentos vão
marcando, pela incerteza, ambiguidade sequencial, ao longo do tempo a memória,
tanto pode haver ocorrido antes ou depois.
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O sofrimento – curioso como quiçá me possa parecer
– é o meio de vida porque é o único meio através do qual tenho consciência de
existir; a lembrança dos sofrimentos passados me é necessária como um
testemunho, uma prova de que continuo a manter a minha identidade. Entre mim e
a lembrança da felicidade passada existe um abismo não menos profundo do que
aquele que me separa da presença real da felicidade. Se a minha vida houvesse
sido como o mundo a imaginava, uma vida de prazeres, libertinagem e risos, eu
hoje não seria certamente capaz de lembrar um só momento dela. Por haver sido
tão cheia de dias e momentos de cumplicidade cínica em que muita coisa não é
dita, e que quase torna irrelevante o prazer de outros homens me invejarem,
melancólicos ou desagradáveis pelas suas cenas monótonas e violências
indecorosas é que posso reviver cada incidente nos seus mínimos detalhes, e, em
verdade, quase não consigo ver e ouvir outra coisa além deles.
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Em verdade, não sei dizer se, tão cheio de meu
vazio, um deus cresce dentro de mim, estou só, e o universo à minha roda,
poderoso e nulo, é a sensação mais nítida, na infinitude limpa dos meus olhos,
a frescura, a claridade. Para tudo estou com a resposta pronta, não vacilo em
coisa alguma, a respeito de nada tenho dúvidas, noto que possuo o hábito de
muito e com frequência palestrar com pessoas inteligentes, nobres, sobre os
mais variados temas. Na qualidade de indivíduo exótico, paradoxal, estou acima
de tudo, e por isso não consigo dominar-me inteiramente. Quando converso, tenho
o hábito de tocar levemente nos braços de meu interlocutor. Que é que pode
significar a morte? Nada pode significar nada em face do que é exato,
categórico...
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Um fulcro, uma certeza fora de mim, por mim
escolhida, mas existindo na realidade, conferido com ela, ordenando-a, fixa e
apesar de tudo mutável, limite máximo da minha direção, do meu impulso cego e
absurdo. Não posso mais fingir que nada observo, tudo me é de todo indiferente,
não posso ver-me empalidecer, secar, chorar, não posso, não posso! Sinto-me
como se estivesse na caldeira do diabo. Sinto náuseas, quero encerrar-me num
claustro para sempre. Creio que a minha intenção em estar escrevendo isto é
lavar tudo com água lustral de alguma prece. Desejo desperdir-me. Não desejo que
me retenha.
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Há algum tempo, um grande amigo meu veio visitar-me
e disse que não acreditava numa só palavra do que afirmavam a meu respeito e
desejava que eu soubesse que me considerava inocente, uma vítima de uma trama
hedionda. Não lhe perquiri em que andavam batendo a língua - o que dizem ou
deixaram de dizer é com quem diz, não comigo, sou indiferente às línguas
humanas; tenho a minha e ela quase não se move.
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Velha solidão, desde a revelação da vida no espanto
do mundo, olho-a com uma angústia sem razão. Mais velha do que o tempo!... é
uma indiferença vazia, a nulidade do pensar, a ignorância que se não sabe
ignorante.
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Eu só, irredutível, princípio e fim, fechado, único
e para sempre. Quê alucinante! Assim mesmo, como é fascinante imaginar-me em
você, na sua fulguração.
#riodejaneiro#, 23 de outubro de 2019#
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