FONTE LUMINOSA DO TEMPLO DE FESMONE XVI PARTE ==== #O NADA E A COLCHA DE RETALHOS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Epígrafe:
"Sete agulhas perdidas no palheiro aos linces
do olhar que perscrutam as frestas entre as palhas secas, que vislumbre o
último brilho da luz que o raio de sol deixou às largas."(Manoel Ferreira
Neto)
-----
Crochetear o nada! Com que linha – grossa ou fina?
Com que cores? Colchetear “retalhos”, com que résteas de criatividade e
invenção? Com que quimeras e ilusões?
====
Jezabel, meu amor, está entregue à feitura de sua
colcha de retalhos. Que lembranças, recordações povoam-lhe a mente? Que
sentimentos, emoções perpassam-lhe o íntimo neste instante? Salomão, meu amigo,
está sentado à beira do rio, esperando o peixe fisgar a isca, peixe frito no
almoço – quê delícia!
=====
E eu pensando em crochetear o nada? Fazer o que? Há
pouco andava pelo quintal contemplando os pés disso e daquilo. Olhava para
cima, a mangabeira repleta de mangas verdes, ainda pequenas. Qual a primeira
que chuparia? – aquela satisfação e alegria tão grandes! Houve sementes que os
conceberam, deram-lhes frutos. Que sementes para crochetear o nada? Sementes da
inspiração, da intuição, da percepção? A inspiração ser o nada a criar, o nada
inspirar a inventar qualquer coisa que preencha os vazios que residem nos
interstícios do ser. E que frutos ad-virão dele? Seria até inusitado chupar o
nada, sentir-lhe o sabor, degustar-lhe com aquele prazer jamais existido neste
tempo presente e nos de outrora. Mente vazia é tenda do nada. O nada que
crocheteio agora será o vazio de amanhã, para esta minha fértil imaginação; o
vazio que crocheteei ontem é simplesmente o nada de agora, para esta minha
dolorida decepção. E perambulo pelas horas que os ponteiros do relógio
patenteiam, e devaneio pelo dia inteiro sem o quê para crochetear o nada,
interessando o vazio que existe neles, espaços para re-colher as coisas que por
ele passam.
=====
Terminada a colcha, Jezabel sentir-se-á feliz, contente,
a criação custou-lhe tempo inestimável, houve momentos em que pensara em
desistir, não seria capaz de realizar os seus desejos, vontades, mas insistiu,
persistiu, poderá cobrir a sua cama, os olhos e a sensibilidade dirão que a
cama atingiu outro aspecto, terá noites repletas de sonhos lindos, coberta pela
colcha. Não sentirá o frio da madrugada. E eu, coitado de mim, se conseguir
crochetear o nada, como vou mostrá-lo, alguém dizer que é um objeto
esplendoroso, há arte e criatividade no nada, merece perpetuar-se, nos tempos
vindouros será luz de alguma ribalta esquecida. O nada crocheteado por mim não
me legará os sonhos indescritíveis de tanta beleza, nem cobrirá o frio.
=====
Quem pode garantir o segredo deste crochê do nada
não seja simplesmente colocar-me dentro dele, comungar-me nele, nada e eu
conciliados. Terminado, qual a imagem se esplenderá a todos os horizontes e
universos? O eu nada, o nada eu? Quem o vislumbrar fará aquele movimento do
dedo indicador do lado da fronte girando para dizer que isto é a doidivania
pura e simples. Mas quem o louco? Eu que crocheteei o nada ou a pessoa que
vislumbra? Ouço-lhe dizer com a sorriso desenxabido nos lábios: “Por que não
experimentou simplesmente nada fazer, esquecer a idéia de crochetear o nada,
levar o tempo na flauta, arrumar o leito na tenda do nada e esvaziar a mente e
dormir o sono destituído de qualquer sonho? Teria sido mais proveitoso. Só
mesmo eu para este despautério sem limites” Retrucar – como?
=====
Jezabel e Salomão estão comendo o peixe que este
pescou. Jezabel pensa na continuidade de sua colcha de retalhos, que retalho
próximo será o adequado para a harmonia das cores, o saco está cheio deles.
Enfiará a mão nele e tirará algum. O peixe foi pescado, a colcha de retalho
está quase pronta, e eu sem qualquer condição de crochetear o nada. Estou
simplesmente comendo a impossibilidade que a falta do que fazer criou.
====
Por mim sinto um pouco de medo, medo da tarde
passar sem o que fazer, o despautério do crocheteio permanecer na mente, as
estrelas no céu aparecerem, a lua brilhar, e eu sem nada ter feito durante o
dia. Jezabel terminar sua colcha, pensar em outra para criar, talvez para
cobrir a mesa da sala de estar. Salomão semear sementes no canteiro do jardim,
semente de papoula, de rosa, de lírio, de maçã, de limão, pitanga no quintal.
Todos os dias assim que levantar regar com água da cisterna, observar a vida
deles prosseguindo, breve haverá flores, breve haverá frutas.Depois ir ao rio
pescar, afastar todas as idéias, pensamentos, esvaziar a mente.
====
E dizer que esta idéia nasceu por Jezabel haver
dito a Salomão não poder entender como ele pode pescar tantos peixes, ela
poderia ficar a eternidade sentada à beira do rio, segurando o anzol e nada
pescar. E ele dizer que nem por milagre ou dádiva seria capaz de tecer colcha
de retalho.
#riodejaneiro#, 21 de outubro de 2019#
Comentários
Postar um comentário