**QUANDO O MORTO FALA POR SI** - TÍTULO E ESCULTURA: GRAÇA FONTIS/AFORISMO: Manoel Ferreira
“Pretérito
das Pulgas,
Dizendo
que raras são as pessoas portadoras de um pensamento vivo, pensa-se, com
efeito, o desejo é de achincalhar os valores de nossa contemporaneidade, de
nosso quotidiano, mas nunca que se tem outros objetivos bem mais sérios que
apenas uma afirmação neste nível, embora seja bem explícito que assim o penso,
seja uma incólume verdade.
Raras
são as pessoas portadoras de um pensamento vivo.
Poder-se-á
replicar que em tudo isto não existe idéia, nenhuma novidade. Tenho muito
poucas mesmo, e creio que isto é o pecado original mais puro, o pecado, que
alguns supõem terem se anunciado no pretérito das pulgas, antes do rio assim se
chamar, na sua fonte mesma. Disse-o
antes que não tenho uma novidade, a minha é feita de caminhar. Replico, pela
última vez, não me lembra de haver tido a primeira; não irei repetir, é algo de
que sinto sérias ojerizas.
Contudo,
que há nisto uma grande massa de idéias, e nova, isto é, existem nestas
palavras escritas no túmulo inúmeras idéias novas, muitos desejos e vontade de
mais vida ainda, há sim, pois que sou eu quem o faz, não houve outro senão eu
próprio. Mas, como já era esperado, exprimo-as com grosseria. Não há motivos de
agressividade, mas me exprimo deste modo e estilo, e ainda me rejubilo de
prazer e contentamento. Disseram-me que escrever só coisas lindas e doces acaba
por enjoar os ouvintes, leitores, o que concordei. Havia coerência. Não sou um
pequeno sujo que come chocolates de modo compulsivo. Aí, então, sendo
autêntico, assumi a agressão. Comigo não há outro caminho senão os extremos, os
paradoxos. Encontrei agora o meio-termo que tanto as pessoas e íntimos
reclamavam de mim.
A
exposição é mesquinha, frouxa, superficial e de nível ainda inferior à minha
idade. Faz vinte anos cometi o disparate
de aumentá-la dois anos. Os amigos descobriram a mentira, censurando-me por
atitude tão medíocre. Por que aumentar a idade?! Sem sentido. Talvez não
tivesse. Acredito. Pensava comigo que, aumentando a idade, iria mostrar maior
experiência e sabedoria. E, agora, esta exposição dos primeiros dias de
falecido é de nível inferior à minha idade. Adquiri muitas experiências com as
situações e circunstâncias da vida.
É
por um destes impulsos a que se procura em vão resistir, que se entrega fácil a
hesitações tantas, que me ponho a escrever estas poucas linhas, quem quiser que
compreenda e entenda mesmo que à moda das orelhas pontiagudas, tenho pouco
tempo, antes que o primeiro verme venha roer as frias carnes do meu cadáver. É
tudo, em mim e à volta de mim, tão estranho e obscuro!... No entanto, mesmo que
vivesse ainda por uns quarenta anos, juro que não assumiria de novo tal encargo
em relação a qualquer outro período da existência. Deixo a liberdade de um
posicionamento próprio, mas é necessário estar ignobilmente enamorado de si
mesmo para que seja possível a alguém escrever a autobiografia pós mortem, em
poucas palavras, sem me envergonhar.
Se
é que me envergonharia de algo escrito, com certeza tenho uma idéia de quando:
com uma linguagem bem vulgar e chinfrim, já que posso espremer os miolos,
criando coisas de alto nível, com uma linguagem de causar inveja a muitos. Sentir-me-ia escrevendo um diário muito
peculiar a adolescentes, a adolescentes que descobriram a primeira paixão.
Vale
a verdade que não tenho em mira o aplauso dos vivos, dos que estão ainda
sensibilizados com a minha morte. A questão é tão antiga que nenhum ouvido é
capaz de captar com clareza e senso de julgamento. Ouviu-se ser falado em todas
as rodas isto e aquilo, em todos os lugares, aí são os tratamentos mais
delicados possíveis. Almejam com certeza
algum comentário dos futuros biógrafos, especialistas. O biógrafo e o especialista esquecem-se de
dizer com todas as letras e estilos possíveis que seu empreendimento não teve
outro sentido senão figurar no pretérito das pulgas. Mas com certeza estes homens não vão figurar
junto comigo. Não cito os nomes, mas denuncio as falcatruas e interesses
mesquinhos.
Considero
uma vilania expor no mercado literário os sentimentos íntimos de um morto...”.
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