**NOSTALGIAS DO JEGUE ÀS VÉSPERAS DO NATAL** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis AFORISMO: Manoel Ferreira Neto
Estranho isto de relinchar que não temos em nossa cidade problemas de
alagamento, se chove continuamente por dias, na linguagem de nosso povo, “Mas
tem chovido, hein!”. Às vezes, em tom jocoso, quando se trata de jogar
indiretas para alguém que está incomodando, deveria ter “desconfiômetro”, se é
assim que se escreve a palavra; para qualquer eventualidade, coloco-a entre
aspas. Às vezes, por a chuva continuar num lugar a mil e trezentos metros acima
do nível do mar pela manhã as serras estão cobertas de neblina, os sentimentos
se tornam nostálgicos, melancólicos, saudosos, saudade imensa daquilo que não
foi, daquilo que não viverá.
Isto num nível de consideração, pois que noutro há quem diga muitos
adágios de relacionamento com o fenômeno natural, a chuva. “Tudo que cai, aqui
desce”, isto se referindo às ladeiras ao longo de toda a cidade. Realmente, é
dádiva, região montanhosa, assim as chuvas sendo intensas. Não temos problema
de alagamento. Muito embora a água que caia desça para o Rio Santa Lúcia, lá à beira
existem casas construídas, colocando em risco a vida dos pobres, miseráveis.
Final de ano, mais um ano começa, começo de tempestades homéricas,
tragédias insofismáveis. Ao longo dos dias, diante das experiências, vivências,
situações, circunstâncias, os homens vão re-colhendo e a-colhendo suas verdades
incontestes, difícil imaginar como tais verdades não se transformam em
tempestades mentais, espirituais, intelectuais, cerebrais, alagando todo o
corpo, sangue e verdades per-correndo as veias efusivos. Mas, se os homens
pensassem como eu o faço, sendo época de Natal, presentes e guloseimas os mais
di-versos possíveis, ao invés de gastarem fortunas para "mimarem" os
amigos e íntimos, seria interessante, e muitíssimo interessante, se dessem de presente
mutuamente as verdades a-colhidas, no "amigo oculto" trocarem
verdades. As próprias tempestades que ad-viriam das verdades acumuladas seriam
extintas, a verdade do outro serviria em altíssimo nível para mudar a vida,
torná-la suportável até o ano próximo. Um casal de artistas, à meia-noite do
Natal, trocando verdades: "Benzinho querido, amor de minha vida, o diabo
não é como se lhe pinta. Aprendi neste ano que pintar o diabo como ele é é
re-presentar-lhe de olho ávido na Bem-aventurança do Eterno no Inferno. Eis a
minha verdade deste ano. Feliz Natal, fofuchinha, tudo de bom para você".
"Obrigada, meu docinho de figo. A minha verdade, que lhe dou de presente
com muito carinho: a verdade não serve para coisa alguma senão para tripudiar
com a morte, com o nada dela". Beijam-se, abraçam-se, roçam-se, roçagam-se
à luz de um vinho seco delicioso.
Fosse eu homem, jumentadamente homem, não daria presente a ninguém, não
enviaria cartões de natal a ninguém, não desejaria a ninguém que os sonhos
fossem realizados a todos. Dormiria de seis da tarde às seis da manhã. Passaria
o Dia de Natal no bosque, passeando, passeando. E no Ano Novo simplesmente
enterraria as verdades adquiridas no ano que passou, de nada me serviriam.
Subo a rua São Francisco. Tenho que entregar frete de telhas na rua das
Biquinhas, a residência de historiador, um dos mais importantes de nossa
atualidade, tem goteira por todos os lados. Com dificuldades, conseguiu
contratar pedreiro para colocar as telhas. Em dias de chuva, isto é difícil;
contudo, na condição de equus asinus, não me cabe questionar se é possível ou
impossível “colocar telhas em dia de chuva”. Creio que será ele mesmo a
empreender a jornada, ainda que escorregue e se despenque, a altura é mínima,
se algo acontecer é a quebra de algum membro, nada mais. É homem forte,
robusto. Recuperar-se-á logo. Ainda mais bastante cuidadoso consigo. Só depois
de alguém intimo lhe chamar atenção por comer carne gordurosa em bares, tomando
a branquinha, acompanhada da cerveja, ser o motivo de suas crises de gota
intensas é que deixou de o fazer. Tinha de se cuidar.
Assim, pensar num dia de chuva intensa, com a carroça cheia de telhas,
peso enorme para levar ladeira acima, é atitude digna de asno, não haja dúvida,
é por esta razão que sigo a trilha, necessito garantir a sobrevivência. Para o
dono não cai dinheiro do céu, isto sendo ele homem, sendo eu asno, aí é que não
cai mesmo, qual a utilidade do dinheiro para mim?
Lembrou-me aquando na Rua da Glória trabalhei algumas vezes entregando
carteiras de estudantes, ouvira alguém contar, não me importa se piadinha, se
lenda, se fato real. Grande filósofo da humanidade, vendo o carroceiro surrar o
cavalo, sentiu as dores do cavalo, pulando-lhe no pescoço, desejava salvar o
cavalo da surra. Neste instante, ensandeceu-se por completo. Dez anos de
sandice, com alguns intervalos de lucidez, a língua ferina se mostrando ainda
mais, obras capitais desse filósofo nasceram neste ínterim da sandice e
lucidez.
(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE DEZEMBRO DE 2016)
Comentários
Postar um comentário