**DO ASNO PENSANTE MISSIVA AO MAGISTRADO** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/AFORISMO: Manoel Ferreira Neto
Em primeira instância, agradeço ao senhor-autoridade o privilégio de
receber a correspondência a mim enviada, o que me torna equus asinus orgulhoso
da própria raça, prazer e alegria, quase que me deito ao chão, enquanto espero
o próximo frete. Creio saber o porquê de ser muito difundido no mundo: por ser
utilizado desde tempos imemoriais como animal de tração e carga. Sou puxador de
carroça pelas ruas da cidade, a fim de sustentar a mim e ao dono; receber
correspondência de homem tão importante, um dos maiores de nossa comunidade, é
motivo de orgulho sem eiras, deixando as beiras para quem quiser outorgar-me
mais que orgulho – quem sabe não me esteja sentindo o deus dos asnos.
Jamais poderia ser injusto e ingrato com o dono. Nunca me fora deixado
de dar de comer. Felizmente, não tem os pequenos vícios dos homens, não gasta o
dinheiro que ganhamos com suor nas ninharias. Vivemos de nosso trabalho
dignamente. Vivemos para comprar os nossos alimentos, são eles que nos dão
forças para o trabalho contínuo rua acima, rua abaixo. Disso o
senhor-autoridade está consciente: não fazemos outra coisa senão trabalhar dia
após dia.
Em segunda instância, respondendo às palavras, nas entrelinhas e linhas
chamando-me de presunçoso, o melhor seria se me preocupasse apenas com o puxar
de minha carroça, deixando os assuntos sérios para os homens que têm a
engenhosidade e arte de tratar deles, contribuindo para comunidade sadia de
idéias e instintos.
Digo-lhe, senhor-autoridade, que não fora eu a escrever o que recebera,
e sim alguém quem tornara legíveis os pensamentos, verdadeiro expert na língua
dos asnos; sabe o senhor que não recebi nenhum outro dom gratuito senão o de
relinchar, puxar carroça, comer no coxo a ração de cada dia. Não tenho dons
para escrever. Ah, imagine que tivesse unicamente o dom de falar, nem isso
posso. O senso comum se engana redondamente quando pensa, diz, sente que os
equus asinus são de todo desprovidos de inteligência.
Aliás, senhor-autoridade, dizendo ser eu presumido, presunçoso, gostaria
de lhe lembrar que ainda não me aprofundei na linguagem erudita de sua
língua-mãe, não compreendo o que estes termos possam significar, qual o sentido
deles em verdade. Quem sabe não me quisesse presentear com dicionário? Peço-lhe
que seja o mais atualizado.
Chama-me presunçoso, presumido, por me julgar grande pensador, filósofo
de última ordem. O que achincalha os homens, mostrando-lhes que sou eu quem tem
o dom de pensar, de observar as mazelas quotidianas de nossa sociedade. Deveria
eu considerar que sou apenas “asno que puxa a carroça” descidas e ladeiras, a
fim de entregar os fretes, e, como já disse, sustentar a vida de meu dono e
minha. “Que arrogância é esta de querer vir me ensinar a língua-mãe? Você é
asno. Não se esqueça!”.
Creio ser o senhor-autoridade homem de privilegiada cultura,
intelectualidade, decide os caminhos de sua querida gente, então quem acha que
lhe desejo ensinar é porque alguma autoridade exerço. Mas não. Não tenho
poderes magistrais, se desejar, do magistério. Quanta vez, passando, vira o
senhor com pilha de livros de direito civil, família, criminal. Até ouvira
dizer que o senhor está estudando para se inscrever ao doutoramento na
universidade.
Devo-lhe dizer que, passando numa de nossas mais movimentadas ruas da
cidade, encontrei-me com companheiro. Empaquei-me. Comecei a relinchar e
levantar as patas dianteiras, correndo o risco de o patrão cair para trás. O
companheiro continuou a olhar-me até que, por intuição, ou algo neste gênero,
não sabendo definir bem, começou a olhar para os movimentos de meus beiços,
traduzindo o que estava a manifestar. Sentou-se à calçada, tomou de caderno de
cartas que havia comprado naquele momento, passando a escrever o que lhe ditava
eu com os beiços. Pode imaginar quantas pessoas pararam e ficaram a olhar,
donos de casas comerciais ficaram à porta, conversando, dizendo de mim que
estava a ditar a missiva ao senhor. Alguns repórteres de jornal, dois, quiseram
conversar com meu dono, mas ele ficou em silêncio. Não disse palavra. Não
permitiu que ninguém tirasse fotos. Lero-lero na rua do inferno. Tenho a
certeza de que ouvira comentário a respeito. Aquela cena, senhor autoridade,
jamais será esquecida de nossa comunidade, lembrar-se-ão todos, os que
assistiram a ela, os que ficaram sabendo dela.
(*RIO DE JANEIRO*, 13 DE DEZEMBRO DE 2016)
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