**DRIBLANDO E JOGANDO - O RESTO É SOBREVIVER** - Título: Graça Fontis/AFORISMO: Manoel Ferreira Neto
Não sei quantos cadáveres estraçalhados
não sei quantos defuntos difundidos
nas páginas dos jornais, como classificados
do morticínio diário nas esquinas.
É preciso atravessar a rua
talvez como um verso atravessa
a mata hirsuta de uma conversa de negócios.
É preciso atravessar a rua
talvez como um carneiro atravessa
a fábula onde um lobo bebe água.
Não sei quantos segundos restam
antes que desapareça o vulto verde
e surja o homenzinho ensangüentado no semáforo.
É que tudo se acha fora de um livro falho. Assim, o leitor preenche as
lacunas alheias. Assim, posso preencher as minhas lacunas. Por méritos, após
uma vida de trinta e dois anos, de morto já faz alguns, me encontro à soleira
da eternidade, preciso com urgência considerar as lacunas para que seja
convidado a entrar nela com todas as patas e orelhas pontiagudas. Para isso,
preciso considerar as lacunas da vida e da morte.
Não conheço maior jogo de dados que o jogo do nascimento e da morte:
preocupados, interessados, ansiosos ao último ponto, os homens assistem a cada
partida, porque a seus olhos tudo se resume nisso. A natureza, pelo contrário,
que não mente nunca, a natureza, sempre franca e aberta, exprime-se a este
respeito de um modo muito diverso: diz ela que a vida ou a morte do indivíduo
nada lhe importa; é o que exprime entregando a vida do animal e também a do
homem a todos os acasos, sem empregar o mínimo esforço para os salvar. Observem
o inseto no nosso caminho: o mais pequeno desvio involuntário do nosso pé
decide da sua vida ou da sua morte. Veja-se os equus asinus, estúpidos, tapados
até a fuça, empacadores, teimosos, mesmo morrendo, quando empacam, não há quem
possa reverter a situação; veja-se a lesma dos bosques, destituída de qualquer
meio de fugir, de se defender, de enganar, de se ocultar, presa, exposta a
todos os perigos...
A natureza abandonando assim sem resistência os seus organismos, obras
de uma arte infinita, não só à avidez do mais forte, mas ao mais cego dos
acasos, à fantasia do primeiro imbecil que passa, algum ímpio que insiste e
persiste em se persignar diante do tabernáculo, pedindo perdão por seu pecado e
pecadilho de não ter um senso crítico acerca da hipocrisia que é seguir alguma
coisa ao pé da letra. Não acredito em tabernáculo de ímpios.
(*RIO DE JANEIRO*, 07 de dezembro de 2016)
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