*MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE UM JEGUE** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/AFORISMO: Manoel Ferreira Neto
"O limite do homem são as cinzas, que, antes, foram ossos"
(Incitatus da Fazenda dos Bois)
Felizmente é chegado o instante, o derradeiro instante do trabalho e das
distrações singelas e meigas. Torna-se necessário vestir a roupagem da vida e
se preparar para as posturas clássicas, comportamentos tradicionais, atitudes
convencionais. O peito de um homem autêntico e sincero é uma morada que me
agrada muito mais que as tabacarias e baiucas melancólicas e insensíveis. É uma
sepultura alegre e jovial onde ele cumpre as obrigações, assume o destino com
júbilo e orgulho. Não sei se teria coragem suficiente para dedicar como saudosa
lembrança, triste recordação, dependendo, exclusivamente, do modo de pensar e
sentir, pedindo a um amigo ou ente familiar, podendo ser os filhos, a esposa,
amigos muito íntimos, quem não iriam deixar, em hipótese alguma, de ouvir o seu
derradeiro pedido, que inscrevesse na laje tumular, seguindo a forma de um
livro, como em algumas a forma de uma Bíblia, ““Por que haveria eu de negar de
pés juntos, sentado no cabresto, que trago em mim a veia do nômade, daquele
indivíduo que leva vida errante, na veia tenho o sangue dos sofrimentos?”
Após o primeiro verme ter roído as frias carnes do cadáver, a inscrição
tumular, se se quiser o epitáfio, não teria mais qualquer sentido ou valor,
permanecendo inscrito ao sabor da chuva e do sol, da primavera e do verão,
outono e inverno, por todo o sempre.
O melhor seria que no estilo de escrever a inscrição tumular fosse
inteligível, possível deixar bem a dúvida, se não a escreveu por não querer
passar o resto da eternidade sozinho, necessitou chamar a atenção, ou se quis
justificar o fato de que viveu a vida eminentemente sozinho, envolvido com as
sombras de todos os seres e de todas as coisas, quando poderia ter vivido no
meio dos homens, das coisas, dos objetos. A dúvida persistindo por todo o
sempre, por quem visitasse a sepultura. Havendo alguns com quem conviveu que
têm a ousadia e a pachorra de afirmar que em verdade o desejo era sim de chamar
a atenção.
Quem, visitando o túmulo de um amigo ou entes familiares, levando algum
bouquet de rosas, uma vela, nalgum dia qualquer ou em Dia de Finados,
resolvesse passear pela “cidade dos pés juntos”, fosse estar no seu túmulo,
lendo a inscrição tumular, pensaria consigo mesmo como foi capaz de algo neste
nível, algo sobremodo consolador, e, sem dúvida, uma consideração enorme com a
vida: “Apesar de tudo, jamais me neguei, me recusei; fui quem fui”. Uma lição:
os caminhos levam à canalhice ou à santidade, cabendo a cada um escolher.
Pensai, oh humanos, de carne e osso, o que estas palavras vos dizeis intimamente,
o que nelas há de uma semente que, regada, dará inúmeros frutos. Quando o sol
alcança o meio do firmamento, nesse instante sai das ondas o infalível Ancião
do Mar, coberto pela escura madria soerguida pelo sopro do Zéfiro, e vai
deitar-se no fundo de côncavos antros. Em volta dele dormem numerosas focas da
bela deusa marinha, saídas do cinzento mar e exalando o acre odor dos abismos
profundos.
(*RIO DE JANEIRO*, 12 DE DEZEMBRO DE 2016)
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