**O LEGADO - INSTINTO E INTELECTUALIDADE À SOLEIRA DA ETERNIDADE** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/AFORISMO: Manoel Ferreira Neto
Agora, na morte, e creio sim ser a derradeira relinchada, pois que o
interesse dos relinchos fora realizado: fiz-me conhecido na vida, atingi os
propósitos, até mais do que esperava, conheci-me, tudo o mais serão reflexões e
meditações da humanidade ao longo da história dos séculos, milênios; espero,
sim, que estes relinchos sejam ouvidos por quem de inteligência e perspicácia
for seguindo os acontecimentos, meditando e refletindo sobre a pedra angular de
minhas idéias ásnicas, acompanhadas dos instintos e da intelectualidade.
Sinto-me feliz, se pudesse mesmo relinchar, o som saindo da garganta e findando
nos beiços, andaria por todo o pasto, correndo não sei, a idade já ia muita,
não tinha mais as mesmas disponibilidades físicas, mas, com certeza com o rabo
enlaçando as orelhas e dançando um tango.
Vem-me à cachola instintiva que isto de ter uns fumos de insigne, de
nobre, não se trata em específico de máscara, mas de uma necessidade compulsiva
de assistir aos meus valores e virtudes reconhecidos, o que, se não falta a
memória, nunca aconteceu. Sinto-me perdido, confuso, alguém afastado com desdém
ou desprezo, para me comparar aos homens, enfim somos diferentes em todos os
níveis e dimensões, sendo assim um modo de me revelar, manifestar. Lego-me
estes fumos para não sofrer, para dar conta de chegar a um minuto além de daqui
a pouco. Conseguindo, esqueço-me destas tristezas e desolações, mas sabendo, de
antemão, que nalgum tempo tudo retornará. Com isto dos valores e virtudes não
serem reconhecidos, qualquer idéia ou pensamento de uma eternidade torna-se
algo vão, sem qualquer pitada de sal. Imagina-se, com efeito, que haverá apenas
uma cruz com o nome, a pedra de mármore tumular, o epitáfio escrito pelo
honradíssimo amigo Guido Neves. Ninguém irá se lembrar que no fundo da
sepultura existem ossos, e estes ossos foram de um asno que, como qualquer
outro, viveu, teve problemas, valores e virtudes, erros e gratuidades. Embora
todos os fumos de insigne e nobreza, outra coisa não representei no mundo senão
um equus asinus presumido.
De agora em diante, é isto realizável e servirá de base à magnífica
união do turco, quando o homem não quererá mais reunir os seus instintos
milenares e seculares à sua cultura, intelectualidade, racionalidade, como
ainda nestes tempos – se quando morri estava ele por completar quarenta anos,
faz cinco anos que faleci, provavelmente só restem os ossos de meu cadáver...
Os homens desejarão ardentemente tornar-se eles próprios a vida, segundo o
Evangelho. Não precisarão mais dos instintos, estão arraigados neles, estão
prontos para outras liturgias.
Seria um sonho crer que o homem encontrará afinal sua alegria unicamente
nas obras de civilização e de caridade e não, como em nossos dias, nas
satisfações brutais, na glutonaria, na fornicação, no orgulho, na presunção, na
supremacia invejosa de uns sobre os outros. Estou persuadido de que não é um
sonho e que os tempos estão próximos. Riem, perguntam: quando chegarão esses
tempos, é provável que chegue? Penso que os homens realizarão essa grande obra
com o Cristo. Quantas idéias neste mundo, na história da humanidade, eram
irrealizáveis vinte anos atrás e no entanto apareceram de repente, quando foi
chegado seu termo misterioso e se espalharam por toda a terra! O mesmo
acontecerá com os homens, o povo brilhará diante do mundo e todos dirão: “A
pedra que os arquitetos tinham rejeitado tornou-se a pedra angular”.
Se alguém cínico, sarcástico, irônico, munido de todas as suas intenções
escusas, tivesse a pachorrice de me indagar, questionar qual seria esta pedra
angular... Talvez até pensasse ele que eu iria hesitar um pouco antes de dar a
resposta, enfim não é coisa que se diz e não se convença e persuada o outro de
que as faculdades mentais não estão indo muito bem, há os risos e gargalhadas
peculiares e convenientes. Não, não teria qualquer pejo em responder, pois que
se é um animal que pode dizer que responde por suas atitudes sou eu, nenhum
outro ainda na face da terra, e não posso garantir que Deus queira outra vez
doar o intelecto para outro asno, sabendo ele inclusive que houve o primeiro, e
a sua tarefa no mundo seria continuar os meus passos. A pedra angular são os
instintos. Pelo menos, isto posso garantir, diante da Assembléia fora dito com
todas as letras que havia eu executado a minha tarefa com esplendor e glória,
mas feri os princípios do além, não era permitido que os asnos pensassem,
fossem pensadores. E por que não? Simplesmente por ser um acinte à raça humana
– se o asno que é tapado até nas fuças, com a sua inteligência e intelecto é
capaz de tantas acrobacias, o que é do homem com a sua inteligência, intelecto,
sentimentos, intuições, percepções, desejos, vontades, e tudo o mais que se
queira incluir, não consegue nem mesmo jogar um toco de cigarro para cima e dar
um chute de imediato, jogando-o longe. Por isso. Deus disse que a raça humana
era digna de respeito, de compaixão, de misericórdia. Todas as raças tinham de
louva-lo, nenhum animal pode ter a pretensão de o superar, quanto mais os
asnos.
Na realidade, há mais sonhos, fantasias e quimeras entre os humanos do
que em mim, o que faria com eles aqui na sepultura. Tudo já está consumado para
mim. Sonhar, sonhar, sonhar, sem objetivo, é coisa bastante esquisita, aliás
irrita muito, pois não podem ser realizadas. Somente a cachola instintiva não
soluciona nada, não contribui com coisa alguma. Nonada: à soleira da
eternidade.
(**RIO DE JANEIRO**, 17 DE DEZEMBRO DE 2016)
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