**PER-CEPÇÕES SONORAS DO ESPÍRITO** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/PROSA POÉTICA: Manoel Ferreira Neto
Para quem todo o passado não é estrada de um diminuir, mas, ao invés, um
prado enorme que nenhum inverno nunca toca, vale sem limites e fronteiras que
nenhum outono jamais acaricia, possuo a arte e engenhosidade de ouvir os sons
que se apresentam ao espírito, aos ouvidos, ritmos e melodias se presentificam
na inspiração, notas e acordes presentificam-se na imaginação, e num toque de
mágica tudo são intuições, percepções, tempo de musicalizar as palavras com
sentimentos, emoções, a alma presente em suas dimensões con-tingentes;
reclino-me, então, na cadeira, desembainho um olhar afiado e comprido ao longo
do quarto em que me encontro ora, dando continuidade ao trabalho, dando
continuidade à vida que se me a-nuncia na sublime trans-cendência do verbo e do
amor.
Quando se traduz o pensamento em palavras, as coisas todas, os homens
todos parecem razoáveis, o prado enorme que nenhum inverno toca parece
inteligível, o vale sem limites e fronteiras que nenhum outono jamais acaricia
afigura-se mágico, o deserto sem distância e longínquo não trans-parece ser mui
quente, caliente, o desejo de passear tendo uma mochila nas costas é
imensurável; mas quando se considera os seres humanos que passam pela rua a
idéia transforma-se em ato de fé.
A rua que tomei desce em declive. Tenho a sensação de já ter andado
pelas vizinhanças e de haver perto uma avenida principal. De alguma parte
chega-me aos ouvidos um vozerio sem igual. A rua faz uma curva brusca e acaba
nuns degraus que conduzem a um beco em nível inferior.
Detenho-me um instante no alto da escada. Do outro lado do beco, há um
barzinho miserável cujas janelas parecem embaciadas, mas na verdade estão
cobertas de pó.Algum som que desconheço, um sibilo, que entre serras,
manuscreve o pórtico partido para o Impossível que não deixa em seu atrás senão
seus vestígios de harmonia e serenidade. O grande papel é a vivência de extrema
lucidez que percorre além de todos os limites do tempo, que passa fora da
cerca, e que nem as flores senão flores, a terra de quando em vez estremece,
rolam as ondas, algumas vezes sua fúria de compreender suas próprias
ilimitações não deixa apenas vestígio, mas ruínas. Pensar como quem anda um
caminho é pensar um caminho, é pisa-lo e senti-lo por baixo, senti-lo
interiorizando-se em cada dimensão. É chupar um fruto e saber-lhe o sentido, é
fumar depois do almoço e o cafezinho. conhecer-lhe o verbo.
Para mim, é uma situação nova de nosso amor, uma aparência de encontro
exclusivo, de busca de conhecimentos e desejos outros, alguma coisa que nos faz
adormecer a consciência e resguardar o decoro. Sinto-me livre de poder evitar
os encontros nos bares, a cachacinha acompanhada de um salgadinho, conversas
inúmeras, o chá de algumas noites, enfim a presença de outra alegria senão ás
portas de um desejo da experiência de amor. A sua presença resgata-me tudo; o
mundo vulgar termina à porta; daqui para dentro é o infinito, o eterno, mundo
superior, excepcional, nosso, somente nosso, sem leis, sem instituições, sem
desejos, um mundo de nos fundirmos um ao outro, de nos completarmos. Um só
mundo, um só casal, uma só vida, uma só vontade, uma só afeição e carinho,
consideração e entrega – a unida ética e sensível de todas as coisas pela
exclusão das que nos são contrárias. Dizem-me decantar, cantar, declamar, recitar
o amor em todos os instantes, toco o mundo, toco os homens. E quando ouço,
penso em silêncio: "Fossem-me dadas as palavras verdadeiras para dizer o
que sinto nestes instantes de declamação, recitação, as con-tingências que me
habitam, extinguiria vez por todas esta atitude e ação, em verdade, em verdade,
é um sonho. Mas agora é realidade, a vida no quotidiano de todas as coisas,
trilhamos os nossos caminhos, sabendo para onde estamos indo, o que o nosso
amor quer de nós.
O que na verdade desejo saber é se há mais liberdade, se há mais
esperança hoje do que nalgum tempo de outrora. O dia inteiro a esperança
exigindo um passado que redima o presente e o futuro. O dia inteiro, sem uma
palavra, a liberdade exigindo que a esperança tenha nascido de seu ventre.
Pela primeira vez, eu, quem sou um ser votado aos sonhos, às utopias,
pela primeira vez sinto-me atraído pela esperança: atração pelo instante-limite
da realização e da felicidade. Numa palavra, pela possibilidade. E pela
primeira vez tenho então amor pela liberdade, pela esperança. É um amor pedindo
realização, a concepção, a vida possível
Limpo os óculos. Estão embaciados. Não posso enxergar bem na tela do
computador com os óculos embaciados. Tento, embora com certa isenção, o golpe
da inteligência de poder ver no assoalho deste barzinho miserável o fruto de
alguma esperança de outrora.
Atrás da esperança não há senão a esperança. Vêm lúcidos nas curvas de
montanhas outras a mão que vibra de sentido, posta livre, e os dedos,
movimentam de um lado para outro comungando os gravetos de verbos articulados
em cada sonoridade da língua, um refúgio e uma libertação, como a voz da Terra,
que é tudo e ninguém é ninguém, a algazarra da Terra e do Mundo na esperança de
serem verso-uno. No silêncio absoluto, as palavras de outrora estremecem de
insanidade, o silêncio estala a minha boca como uma pedra, estala-me os ossos.
Toda essa água que anuncia Deus é isso mesmo – um anúncio, do que jamais foi,
na pálida auréola do ar, das casas silenciosas, da copa das árvores ao longe,
raiadas de pingos de chuva, quando o silêncio é tão profundo que me ouço ser.
A única vida verdadeira está no presente. Mas a que distância está esse
presente não há como se prever. Pode ser daqui a mil anos, no século XXII,
quando nem as cinzas existirão de mim, do que fui, do que represento no mundo.
No momento nada é possível exceto alargar a idéia de esperança e de liberdade,
senti-la na carne e nos ossos.
A emoção traz-me lágrimas ao olhos, e eu volto a cabeça, a fim de não me
trair, negligenciar-me. O senhor que me atendera, provavelmente de uns
sessenta, setenta anos, encontra-se agora palitando os dentes, enquanto olha o
pequeno movimento de seu barzinho miserável. Encontro-me eu a tomar a minha
bebida, uma cachacinha.
A rua que tomei descia em aclive, aproveitei deste momento para refletir
e meditar sobre o amor que tudo modificou em minha vida, devolveu-me a
esperança, devolveu-me a liberdade, percepção de coisas novas, desejos
inusitados e excêntricos, ao avesso da terceira lâmina que cria ilusões e
quimeras, fantasias, as lâminas múltiplas da busca de integração e de visão do
jardim estar bastante florido e já ser o final do inverno. Aproveitei para
subir os degraus do conhecimento de sentimentos que sei, hoje, serão a redenção
e a ressurreição, serão o húmus de toda a vida.
(**RIO DE JANEIRO**, 22 DE DEZEMBRO DE 2016)
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