**AMBÍGUO SENTIR A-TEMPORAL DO JEGUE** - TÍTULO E PINTURA: Graça Fontis/AFORISMO: Manoel Ferreira Neto
Não esperais vós que a título de um discurso dos mais empolados,
conquiste-vos, em primeira instância, com a musicalidade dos relinchos em seus
devidos lugares anunciando novas emoções e novas trilhas por onde passar,
vislumbrando e con-templando o cenário e o horizonte, desejando o néctar dos
asnos em outroras de relinchos e risos!... Seria uma homenagem póstuma das mais
queridas por minha cachola instintiva em comunhão com o rabo passado nas
orelhas, e os passinhos de um asno dançador, deixando nos beiços de outro asno
a baba escorrer. Não pensais vós ser isto uma afronta, um acinte à minha
santíssima memória ásnica. Não me ofendem. O que poderia ofender-me senão dizer
que não posso enxergar a cauda, mesmo que dance em redor de mim próprio. Só
isto.
Para além da curva da estrada, espreito para o feno do campo com a cara
toda, o sibilo vago de longe na tarde serena e suave. Lentamente, o campo se
alarga e se cobre de luz.
A imagem da velhice e da senilidade, no calor voluptuoso do cadafalso,
hostil a pirueta vencida aos pés do louco. O que é certo e imediato, o que me
vem à boca e tem nome, o que é exato e mensurável, refugia-se na timidez da
penumbra e do silêncio, porque a voz obscura que me fala transcende o passado e
o futuro, vibra verticalmente desde as raízes até aos limites do universo, aí
onde a lembrança é só pura expectativa despojada do seu contorno, e só pura
interrogação. O que é duvidoso, o que me vem à cachola instintiva e não tem
medo, o que contraditório e paradoxal, enrosca-se no tronco de uma árvore e de
sua sombra, porque os desejos ininteligíveis, os sonhos envolvidos em neblina,
que me mostram a imagem e o símbolo, aí onde às vezes torna-se possível a
lembrança pura, antes que o tempo tenha transformado a memória em imaginação,
vibram as utopias e os desejos mais puros e verdadeiros. Talvez, vós não podeis
inda entender tais relinchos, pois que são frutos de longa meditação, e tirando
as gorduras e os sebos, pude assim expressá-las, mas haverá tempo que ireis
entender completamente...
E a tarde tergiversa-se pelas irregularidades das montanhas e colinas,
extravia-se pelo céu sem nuvens no horizonte. Eis as angústias insuportáveis
que me arrancam gritos, gemidos, pesados soluços, e que lágrimas, e lamentações
parecidas aos cantos fúnebres à soleira dos incrédulos. Vivo ainda, presto-me
as honras dos mortos. Sou um nômade que há muito tempo segue os seus passos e
traços; sempre caminhando, sem destino, sem rumo; de forma que pouco me falta
para ser judeu errante, salvo não ser judeu nem eterno.
Pergunto-me, perplexo e desorientado, estarrecido e vacilante, o que fiz
da serenidade de ainda há pouco. Porque de súbito me parece que estou só, muito
mais só do que na solidão de meus dias e de minhas noites, na pequena caverna,
ao ver que as pessoas à volta têm interesses em comum, laços de parentesco ou
de tácito entendimento, cada qual pertencendo ao outro, um dependendo do outro,
amparando-se mutuamente, ligados por serpentinas invisíveis lançadas em todas
as direções, estabelecendo uma teia gigantesca, envolvente, que abarca a todos,
menos a mim.
(**RIO DE JANEIRO*, 14 DE DEZEMBRO DE 2016)
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