**RAZÃO DE LIMITES IN-VERSOS** - Manoel Ferreira
Bons dias!
Não há duvidar que os filósofos, quase que por consenso unânime, por
línguas solenes e idôneas, ridicularizam, ironizam, mangam dos advogados, rindo
às sorrelfas de todos os tempos, aos idílios de todas as memórias, de esguelhas
olhando e, com muita propriedade, qualificam essa profissão de ciência dos
jegues, só lhes faltam duas pernas e o digníssimo rabo. Seria porque só é
possível interpretá-las a critério e rigor com os instintos à flor dos pelos, a
razão não pode haver com elas, pois não é capaz de se esticar, de se estender,
seus limites são bem reduzidos, para ser complacente e quem sabe até solícito
demais, aproveito o ensejo de estar bonzinho hoje, até os confins e arribas da
cultura, dos hábitos e costumes, das manias e princípios, dos deveres e direitos,
os instintos são capazes de transcender aos confins e arribas, atingirem os
in-versos infinitos do bom senso? Não saberia eu responder a tão percuciente
questionamento, está muito além das dimensões todas de meu ser, de minha
in-versa razão e avessa intelectualidade, teria de revirar céus e terras em
busca dos fundamentos e essências da ciência, ou mesmo dialogar com algum
jegue, num crepúsculo pálido de outono, sentado numa pedra no alto da montanha,
o jegue parado ouvindo e zurrando, para saber dele como se transcende aos
confins e arribas e se atinge os uni-versos infinitos do bom senso com os seus
instintos. Seria um momento inestimável, seria uma aprendizagem das arábias.
Estaria condenado a uma tarefa sem fim, a uma história sem fim de persistência
e esperanças, jamais iria conseguir qualquer resultado, não teria quaisquer
benefícios com a persistência e a esperança de fazê-lo, nem o apenas benefício
da teimosia em resolver a questão. Contudo, posso afiançar que, jegues ou não,
os advogados serão sempre os intérpretes das leis e os reguladores de todos os
negócios, disto não há qualquer possibilidade de fingir não ser verdadeiro, de
sair pela culatra.
Que vantagens proporcionam aos que das ciências fazem profissão? Morrem
de fome os teólogos, definham os físicos, caem no ridículo os astrólogos, comem
feno os advogados, dão nó em pingo dágua os filósofos, os dialéticos são
negligenciados e desprezados. Só o médico faz fortuna, sente plenamente
realizado, rindo de orelha a orelha, saltitando de prazeres e volúpias.
Para fazer fortuna seria necessário que a medicina tivesse uma vantagem
superior. Que vantagem seria esta? Seria que as doenças em nossa atualidade
estão aumentando muito, estão aparecendo outras que a humanidade antes não
conhecera, nem inconscientemente podia pensar que seriam possíveis, assim o
número de pacientes está aumentando bastante, uma consulta de cento e cinqüenta
reais, recebendo vinte pacientes num dia apenas, ganhará sem descontos três mil
reais, só num mês irá ganhar noventa mil reais? É caviar no desjejum, almoço,
café da tarde, jantar, lanche antes de se entregarem ao sono justo, além dos
banquetes platônicos regados a uísque e churrasco para os amigos, íntimos,
conhecidos, e mesmo os asseclas que nunca podem faltar a estes banquetes
divinos. Nem todos podem pagar essa quantia para uma simples consulta, salário
mínimo é apenas para um grão de arroz, outro de feijão, um bifezinho de músculo
ou farofa de cem gramas de bofe, estão preferindo procurar os médicos do pronto
socorro, que é de graça a consulta. Nos meus parcos conhecimentos desta
ciência, penso que a sua maior vantagem está em que, quanto mais ignorante,
ousado e temerário é quem a exerce, tanto mais estimado é pelos senhores
laureados. Ademais, essa profissão, do modo porque muitos a exercem hoje em
dia, se reduz, limita-se a uma espécie de adulação, quase como a eloqüência ou
de uma espécie de eloqüência, quase como a adulação. Os vice-versas dão um
resultado supimpa, jamais alcançados apenas com a unilateralidade.
De tudo quanto estou dizendo acerca destas ciências, da teologia, da
filosofia, do direito, da medicina, pode-se concluir, sem qualquer medo do
equívoco deslavado ou do erro simples, que as artes mais vantajosas são as que
mais se relacionam com a loucura, as que mais lhes são íntimas. É isso uma
espécie de piada? Não, absolutamente. Tenho eu cara de algum piadista chinfrim
e ridículo? A piada não é uma ciência, não é uma arte, é apenas uma invenção
ridícula dos homens para que possam rir a deus-dará, já que nada mais é capaz
de lhes fazer rir, o bicho está pegando em todos as perspectivas da sociedade e
do mundo, sejam picantes ou de salão, sejam sem sal e tempero, sejam uma
verdadeira “xangana”. Não se conta uma piada com os artifícios da razão, isto só
é possível com os arrebiques dos instintos galhofeiros, das jeguices
sarcásticas; iria dizer “jeguices satíricas”, mas, com efeito, o jegue jamais
será satírico, é muito sério, sincero e verdadeiro com os princípios de sua
estirpe e raça, tive de frear a língua com propriedade e pomposidade para não
cometer um disparate deslavado. Estou falando sério, creio jamais haver sido
tão sério quanto neste instante. Poderia até dizer que estou bem inspirado, fui
iluminado pelos raios do sol que brilham neste momento, fazendo até o asfalto
tremer, se olhado de baixo para cima da rua ou da avenida.
Conforme fora educado em todos estes longos anos de minha vida, os
homens somos vocacionados à felicidade, e vivemos única e ecs-clusivamente para
desejá-la, buscá-la, vivê-la de modo digno e honrado, rir à toa em sua plena
posse. Ainda conforme esta verdade por que fui educado é que me viera à mente
esta afirmação em princípio das mais disparatadas, despautérios solenes e
magníficos, mas com um pouquinho de bom senso e arte serei capaz de explicá-la
a rigor. Estas coisas não me faltam, dão trabalho expressá-las, custam horas e
dias, custam esforços sobrenaturais, custam angústias e desesperos sem limites,
mas é a plena alegria e razão de meu viver. São perfeitamente felizes os homens
que, sem ter qualquer relação com as ciências especulativas e práticas, das
letras apagadas e silenciosas, têm como único guia a natureza, nada há de mais
lindo no mundo, nada há de mais esplendoroso a ser contemplado que ela, a qual
não possui nenhum defeito, nenhum avesso de dignidade e honestidade, nenhuma
re-versão de personalidade e caráter, até as árvores de troncos tortos e galhas
sinuosas têm a sua perfeição, e jamais deixa que se percam os que seguem fiel e
exatamente os seus passos, sem a pretensão de sair dos limites da condição
humana, sem sair das fronteiras e cancelas da sensibilidade e espiritualidade
humanas. As ciências especulativas e práticas fazem gastar milhões de neurônios
só para se ter uma noção primária delas, para se aprofundar nelas é preciso ter
muita paciência, sangue de barata, em verdade, jamais ter a mínima pressa de se
chegar a uma conclusão ainda que ordinária, para conhecê-la é necessário
entregar-se-lhe a vida inteira, até a morte pela eternidade, até os ossos e cinzas
pela imortalidade a fora, ainda correndo o risco de os conhecimentos serem
duvidosos. A natureza é inimiga de todo artifício, ornamento, arrebique, e, de
fato, vemos crescer mais felizes as coisas não contaminadas por nenhuma arte,
vemos amadurecer e desenvolver mais plenos de volúpias e alegrias as coisas não
infeccionadas por nenhuma idéia filosófica ou literária.
Seria que comungo asnices instintivas e razões sensíveis e verdadeiras
para mostrar de onde vem a minha índole de satirizar tudo e todos, sem dó nem
piedade, doendo a quem doer, fazendo sofrer mais quem já sofre sem consciência
e sabedoria?
Será com este argumento que penso irei atingir os meus propósitos,
realizar com perfeição as minhas profundas intenções e objetivos, fazer os meus
interesses nestas linhas da razão de limites in-versos. Não será verdade que,
entre tantas espécies de animais, os que vivem mais felizes são os que não têm
disciplina alguma e que só a natureza reconhecem como mentora intelectual, como
mestra, como deusa? Quem será mais feliz e admirável do que os cavalos? O
cavalo, por estar mais próximo dos sentimentos do homem, mais íntimo das
emoções humanas, e sendo por este domado e dominado, participa de modo bem
considerável das calamidades humanas.
Acontece, inumeráveis vezes, que esse animal doméstico, em lugar de
picar a mula da batalha, que até seria rebaixar-se à índole dela, se atira ao
perigo, e, na ambição da vitória, um golpe mortal estende-o por terra,
obrigando-o a comer poeira junto com o cavaleiro. Já não me refiro às cruéis
mordeduras, das esporadas agudas, da prisão que é a estrebaria, das rédeas, das
chibatadas, do pesado cavaleiro, em suma, de toda a trágica escravidão a que
ele, a exemplo do homem, se sujeitou livre e espontaneamente, na ânsia excessiva,
exagerada, paradoxal de se vingar do veado, seu inimigo.
Bem mais desejável é a vida dos mosquitos e dos pássaros, por nascerem
livres e tomar a natureza o encargo de nutri-los. Seriam mesmo perfeitamente
felizes e tranqüilos se não devessem temer as insídias dos homens, nem a
imaginação mais fértil, a imaginação absoluta, seria capaz de elencá-las, vão
além de todas as possibilidades de sabê-las. Quem seria capaz de imaginar
quanto perdem os pássaros da sua primitiva beleza, quando aprendem, nas gaiolas,
os nossos cantos e re-cantos? E tanto isso é verdade, sob todos os aspectos,
que as produções da natureza ultrapassam de muito as da arte.
O ilustre Pitágoras, para quem tiro todos os chapéus que puser em minha
cabeça, transformou-se em galo. Esse filósofo, em virtude da metempsicose,
passou por todos os estados: filósofo, homem, mulher, rei, confidente, peixe,
cavalo, rã e creio até que esponja. E, depois de todas essas transmigrações,
declarou incisiva e radicalmente, com um risinho bem explícito em seus lábios,
os olhos brilhando, que o homem era o mais infeliz de todos os animais, pois
todos os outros estão satisfeitos de ficar nos limites prefixados pela
natureza, enquanto só o homem se esforça por ultrapassá-los. Pitágoras, para
quem não conhece todas as suas façanhas, e por isso não lhe pode conceder o
verdadeiro mérito, costumava antepor os tolos aos sábios e aos grandes, não por
discriminação ou preconceito, não por inveja e despeito, mas por lhes
reconhecer os valores, e tantos que deveriam ser considerados méritos
insofismáveis. A opinião de Grilo era a mesma, um dos companheiros do sensato
Ulisses, quem, tendo sido transformado em porco pela bruxa Circe, preferia
grunhir tranqüilo e à vontade num chiqueiro a andar na pista de novos perigos e
novas aventuras com o seu general.
Bem, retornemos ao nosso assunto, fizera apenas uma digressão para
espairecer as idéias que andam soltando fumaça de tantas tensões e
pré-ocupações. Afirmamos que os que se aplicam ao estudo das ciências estão bem
longe da felicidade e são duplamente loucos, são duplamente varridos da silva,
são duplamente doidos, porque, esquecendo-se de sua condição natural e querendo
viver como outros tantos deuses, não importando se pagãos ou cristãos, fazem à
natureza uma guerra de gigantes em terra de pequeninos. Assim, não há outro
modo de não sê-lo, infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se
aproximam da índole e da estupidez dos brutos, os brutos também são simples e
verdadeiramente sensíveis, não que eles também amam, apesar de que isto seja
uma verdade inconteste, sem empreenderem nada que esteja acima das forças
humanas.
Quem no mundo viverá mais feliz do que os vulgarmente chamados bobos,
tolos, insensatos e imbecis? Dizemos mesmo que sentimos prazeres inusitados, alegrias
inomináveis, satisfações indescritíveis só em pronunciar estes nomes, pensar
neles é a felicidade plena e absoluta, porque são muito bonitos esses nomes. O
primeiro nome que conheci em minha vida, tendo-o achado lindo, maravilhoso,
fora “parvo”, li-o nalgum livro, olhei no dicionário o seu significado. Daí por
diante, fui elencando no meu vocabulário estes nomes lindos e maravilhosos.
Talvez haveriam de ser os parvos a receberem de mim os áureos encômios
da estirpe, a terem sensível e cordialmente os meus reconhecimentos e
considerações, era conhecer-lhes nas profundidades da alma, era saber-lhes os
valores e virtudes, era sentir-lhes as felicidades que lhes habitam e também os
seus irmãos de veias e sangue, os cretinos, idiotas, imbecis, tolos e bobos.
Desejo dizer uma coisa que, em primeira instância, en passant, talvez
haja quem tome por extravagante e absurda. Mas, que importa isso, hein? Apesar
disso, não desejo deixar de dizer, tanto mais quanto é superior a qualquer
outra verdade, e, sendo superior a qualquer outra verdade, é a verdade em seu
estado puro e genuíno, é a verdade absoluta, é a absoluta divinidade da
verdade, é a que todos os homens queremos encontrar para sermos felicidades até
à soleira da eternidade.
É ou não exato que os homens que se julgam privados de sentimento nenhum
medo têm da morte? E esse medo não é um mal indiferente! Ademais, estão isentos
dos terríveis remorsos da consciência; não temendo nem trevas nem fantasmas nem
almas penadas, não são atormentados pela perpétua perspectiva dos males; não
são enganados pela vã espera de futuros bens, de felicidades eternas, de
alegrias imortais. Em suma, os seus dias não são envenenados pela infinita
série de cuidados a que está sujeita a vida. A desonra, o temor, a ambição, a inveja,
o amor, a amizade, a hipocrisia, farsa e falsidade, são coisas inteiramente
estranhas para eles, pois gozam da incomparável vantagem de só na forma
diferirem dos animais.
Insensatos partidários da sabedoria! Ó partidários insensatos da
sabedoria! Por gentileza, ponderem, examinem atentamente quantas agonias do
espírito os atormentam dia e noite; reúnam em bloco, sob os seus olhos, todos
os di-versos males da vida, todas as tragédias do quotidiano, todas as
desgraças do mundo; e julgue finalmente, por si mesmos, quanto é grande a
felicidade que proporciono aos meus tolos, imbecis, insensatos, bobos. Não
gozam eles apenas de um assíduo prazer, rindo, jogando e cantando blues,
breganejas, sertanejas, serenatas, música popular brasileira, mas me parece, ademais,
que a alegria, prazer, chacota, o riso, seguem-lhes os passos por toda parte,
participam de suas sombras por todos os sítios e roças da ignariedade.
Dir-se-ia que os deuses tiveram a bondade de misturá-los com os homens para
edulcorar a tristeza da vida humana, para emoldurar as melancolias da estirpe
humana e instintiva. Desejaria que todos notassem ainda um privilégio que honra
muitíssimo os meus súditos. Di-versa é a disposição do coração humano de
indivíduo para indivíduo; mas, quanto aos meus loucos, doidos, varridos da
silva, todos os homens sentem prazer em possuí-los, como se soubessem que eles
são da sua natureza. Desejam-nos com transporte, abraçam-nos, lisonjeiam-nos,
passam-lhes a toalha fria na testa para lhes enxugar o suor, permitem-lhes
dizer e fazer todo mal que lhes aprouver. Não só se encontra ninguém que se
atreva a contrariá-los, como parece que até as próprias serpentes, por um
natural sentimento da sua inocência, contêm diante deles a sua inata
ferocidade. São sagrados para os deuses, para mim sobretudo, motivo por que é
muito justo que todos usem para com eles do mesmo respeito.
Os meus loucos têm uma vida totalmente oposta e observam todas as
maneiras e jeitos que mais costumam agradar, di-vertindo os inteligentes,
cultos, intelectuais, advogados, filósofos, cientistas, teólogos, os sábios com
mil chacotas e bobagens, mangas e asnices, com ditos satíricos e sarcásticos,
com caretas e disparates, línguas e despautérios, de fazer qualquer pessoa
deitar no chão, balançar as pernas para cima e rebentar de riso. Haveria quem
já observou com percuciência, com os seus olhos de lince, o privilégio que têm
os imbecis de poder falar com toda a sinceridade e franqueza? Haverá coisa mais
louvável, digna de todos os aplausos de pé, do que a verdade? Segundo
Eurípides, tudo o que o imbecil encerra no coração ele o traz também impresso
na cabeça e o manifesta nas palavras. Segundo o mesmo Eurípedes, os sábios têm
duas línguas, uma para dizer o que pensam e a outra para falar conforme às
circunstâncias, conforme os interesses mais íntimos: quando o querem, têm
talento para fazer o preto aparecer como o branco e o branco como preto,
soprando com a mesma boca o calor e o frio e exprimindo com palavras exatamente
o contrário do que sentem no peito.
Seria uma injustiça de minha parte, deixar, nestas linhas da razão de
limites in-versos, de lastimar a sorte dos políticos. Oh! como são homens
infelizes, desgraçados! Inacessíveis à verdade, só contam com a amizade dos
bajuladores, dos asseclas, puxa-sacos.
Seria que alguém me pudesse explicar com todos os argumentos a razão, os
jeitos e maneiras de os políticos não gostarem de prestar ouvidos à verdade,
não apreciarem ouvir as vozes do senso e dos instintos? E por que detestam a
companhia dos filósofos? Bem percebo que isso se deve ao medo que têm os
políticos de encontrar, entre os filósofos, algum petulante ou pernóstico que
se atreva a dizer o que é verdadeiro e não o que é agradável, o que é a
realidade e não o que é a chinfrinidade da sorrelfa, o que é real e não o que
as ilusões perdidas e as quimeras olvidadas a-nunciam, re-velam, man-ifestam!
Concedo, de bom grado, que a verdade seja (od-iada) por todos e muito mais
pelos políticos e militares, desde a eternidade ostentam, com medalhas e tudo o
mais, suas importâncias e méritos indiscutíveis, em suas mãos está o destino
dos homens e da humanidade. Mas é justamente essa razão o que mais honra e
dignifica os meus loucos, os meus queridos e amados destituídos de qualquer
razão ou sensibilidade. Nem mesmo dissimulam os vícios e os defeitos dos reis?
Que estou dizendo, meu Deus? Sabemos que os políticos e os militares, em lugar
de ficarem indignados, enraivecidos, aborrecidos, magoados, sentindo-se nada,
riem-se de todo coração quando um parvo lhes diz coisas que seriam mais do que
suficientes para enforcar um filósofo, para lhe mandar ao inferno ou às chamas
da eternidade. Só se costuma defender a verdade quando não se é atingido por
ela, quando não se é comprometido por ela; ora, só aos loucos os deuses
concederam o privilégio de censurar e moralizar, satirizar e ironizar, sem
ofender a ninguém, sem lhes denegrir a imagem ou o panorama das estirpes. Quase
pela mesma razão é que as mulheres gostam dos loucos e dos bobos, dos parvos e
dos imbecis, e é por isso que esse sexo é tão inclinado ao riso e às
frivolidades. Ademais, qualquer coisa que façam as senhoritas, senhorinhas,
senhoras, raparigas e damas com essa espécie de pessoas (e às vezes com toda
espécie e laia), parece-lhes uma brincadeira ou uma chacota, um simples
sarcasmo tão engenhoso e ladino é o belo sexo em colorir e mascarar os seus
ardis.
Quando um homem comete um estranho erro, esquisito despautério ou
disparate, não só de senso, mas também de inteligência, nele persistindo
longamente – por exemplo, quando, ao escutar o zurro de um burro, julgando
ouvir uma sinfonia ou, então, quando, embora pobre e de origem humilde,
imaginar ser Onassis – nesse caso se diz que o pobrezinho perdeu o miolo ou
mais um parafuso afrouxou-se na sua cachola. Mas essa loucura, quando dirigida
a um objeto de prazer, como costuma acontecer quase sempre, bastante agradável
se torna tanto para os que a têm como para os que são menos espectadores.
Assim, essa espécie de loucura é bem mais espalhada do que em geral se pensa.
Às vezes, é um louco que se ri, debocha, ironiza outro louco, divertindo-se
ambos mutuamente. Também não é raro ver-se um mais louco rir-se muito de outro
menos do que ele. Mas na minha parca e simples opinião o homem é tanto mais
feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto que
não saia da espécie que nos é peculiar e que é tão espalhada que eu não saberia
dizer se haverá, em todo o gênero humano, um só indivíduo que seja sempre sábio
e não tenha também a sua modalidade.
Se alguém ao ver uma melancia, a tomasse por uma mulher, dir-se-ia ser o
pobrezinho um louco. A razão disso é que semelhante perturbação raras vezes
costuma aparecer entre nós. Mas quando um marido imbecil de carne e ossos adora
a mulher, julgando-a mais fiel do que Penélope, mesmo que ela lhe faça crescer
na cabeça um bosque de chifres, e intimamente se felicita, bendizendo o seu
destino e dando graças a Deus por o ter unido a semelhante Lucrécia – ninguém
acha que se trate de loucura, porque isso, em nossa atualidade, é a coisa mais
natural deste mundo.
Manoel Ferreira Neto.
(28 de janeiro de 2016)
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