**HIERARQUIA DE VALORES E LINHAS** - Manoel Ferreira
Bons dias!
Se recebesse de amigos os mais íntimos – não uso mesmo “os mais
chegados”, é ridículo substituir um termo tão nobre, cujo sentido é de
reconhecimento sensível, cordial e espiritual por uma gíria tão medíocre –
convite para “jogar conversa fora” no Bistrô da Cida (restaurante pequeno e
aconchegante que aprecio ir tomar um aperitivo sempre que posso, além da
presença da amiga que sempre me recebe muitíssimo bem) com excelente música
ambiente, apetitoso churrasco de picanha, a velha e consagrada cachacinha
acompanhada de cerveja bem gelada, sentiria bastante recusar, sei que os amigos
ressentiriam, queriam tanto a minha companhia, queriam desfrutar minha
presença, mas é o tipo da coisa que não faço é gastar palavra à toa, mesmo com
a digníssima intimação judicial.
Explicar-me-ia, evidentemente, aos íntimos amigos o porquê de não
aceitar o convite que com tanto carinho, ternura, consideração, além do
sentimento de amizade, de recusá-lo, alfim é uma situação complicada, há até um
modo bem peculiar e singular, sui generis, de isto dizer, é “fazer feio”, não
faço feio com os amigos, explico com a hierarquia de valores e linhas para não
se ter dúvidas ou desconfianças, sempre me compreenderam, sabem que não uso de
estratégias ou tramóias em quaisquer situações e circunstâncias da vida
sensível e quotidiana, sou bem direto, às vezes chegando a ser “grosseiro” com
a tonalidade das palavras e o mérito das razões.
Palavra é uma coisa muitíssimo difícil. Ninguém, creio eu, ainda não
atinou com a dificuldade da palavra, pois que abrir a boca e movimentar a
língua é coisa das mais fáceis, não exige qualquer esforço sobrenatural.
Está-se sempre usando a palavra para se comunicar, para fazer valer as
opiniões, pontos de vista, para afiançar compromissos e responsabilidades, para
dizer das intenções e propósitos, para dizer das dores e sofrimentos, para
re-clamar dos azares e fracassos, chorar as desilusões e frustrações amorosas,
para expressar as idéias e pensamentos, para alfim mostrar-se aos outros,
significando dizer quem se é. Às vezes até me assusto como é que duas ou mais
pessoas juntas não são capazes de fazer silêncio, permanecerem caladíssimas
cinco minutos, têm que falar alguma coisa, têm de usar a digníssima palavra. Há
quem fale sozinho quando não tem ninguém por perto ou pelas ruas da cidade,
consideradas destrambelhadas por todas as pessoas. Falar sozinho na rua na
opinião pública é ser destrambelhado, varrido da silva, coisa de louco mesmo.
Certa vez um primo meu dos mais queridos, passando de carro numa rua ou
avenida, não soubera dizer-me precisamente o local, viu-me gesticulando,
chegando à simplicíssima conclusão de que eu estava falando sozinho. Chamou-me
a atenção. As pessoas iriam comentar. Tenho sim este hábito, quando ando pelas
ruas de nossa cidade, é que estou sempre ansioso e nervoso com as minhas
responsabilidades e compromissos. Olho ao redor primeiro. Se sinto que vão me
perceber, engulo as palavras a seco. Espero que passem; vendo-me sozinho,
continuo a minha fala, continuo tecendo os objetivos e propósitos a serem
realizados.
Aliás, sendo a língua algo livre, espontâneo, ninguém se preocupa se a
está usando devidamente, conforme as regras e normas gramaticais, pode-se falar
os maiores absurdos, o importante é que se está comunicando, a comunicação está
além destas picuinhas da boa língua. Sinto-me incomodado, quando alguém comete
as maiores gafes com a língua, às vezes até corrijo, correndo o risco de ser
considerado um indivíduo sem educação, sem princípios, sem respeito pelos
outros, isto pouco me importa, importa-me o ouvido.
Quando se joga fora? Joga-se algo fora quando não tem mais nenhuma
serventia, não tem mais valor algum, não funciona mais. No mercado, em nossa
modernidade, são incontáveis, inumeráveis os produtos descartáveis, usou,
acabou, jogou fora, compra-se outro. Só para exemplificar em minha realidade:
não sei mais quantos “mouses” já joguei fora, comprando outros.
Jogar palavra fora são outros quinhentos mil réis. Não se acha palavra
para comprar no mercado. Já pensou: vou encontrar com amigos, dirijo-me a uma
loja para comprar palavras que falem sobre dificuldades no relacionamento
conjugal; vou fazer uma palestra sobre “ações”, dirijo-me à loja especializada
para comprar palavras adequadas aos tema, com esta nomenclatura, com o sentido
de empreendimento financeiro. É muito difícil tê-la, há momentos que se faz
mister espremer os miolos e triturar a cabeça para que apareçam, para que se
re-velem. Digo de palavra que expresse sentido, significação, mostre as minhas
intenções e interesses, defina os meus sentimentos e emoções, fundamente as
minhas idéias e pensamentos... Observo isto porque o meu trabalho é com elas,
sem elas estou de pés e mãos atadas. Se me dou ao luxo de jogar fora toda e qualquer
palavra que me aparece, penso logo no futuro, quando necessitar dela. Uma
conversa não se realiza com apenas uma palavra, com algumas, mesmo que por um
segundo, é uma chuvarada delas que aparecem, que são pronunciadas, ouve-se-lhes
o som, sente-se-lhes as intenções e sentidos.
Então, numa conversa de restaurante, com amigos dos mais íntimos, não se
fica pouco tempo, o máximo que se puder ainda é muito pouco tempo para um
encontro dessa natureza, que envolve prazer, alegrias, contentamentos, que
envolve sentimentos e emoções puros, alfim que envolve amizade fidedigna
palavras aos montes são usadas. Jogar todas fora é um desperdício sem limites e
fronteiras. Como é que iria trabalhar no outro dia, tendo gasto tantas palavras
sem quaisquer considerações, sem pensar no valor delas, sem avaliar as minhas
condições futuras, desconsiderando o amanhã. Seria que não teria qualquer
problema, não iriam me faltar de modo algum, estão sempre presentes, não me
fazem falta, se esvaziei a caixa delas, o dobro irá aparecer? Não é verdade.
Teria e muitos problemas com isto. Ficaria olhando para a folha branca de papel
sem única palavra me surgir, naquela angústia, ansiedade, nervosismo, aquele
grande sentimento de culpa e responsabilidade por haver jogado as palavras fora,
como se não tivessem mais qualquer valor para mim.
Não, não poderia aceitar tal convite. Haveria alternativa, óbvio.
Aceitaria o singelo e dócil convite, se não se importassem os digníssimos
amigos, se falasse pouco, se mantivesse silêncio o mais possível, deixando-lhes
jogar suas palavras fora, ouviria com toda a acuidade atencional, eivada de
consideração, ternura, carinho e amizade. Perguntar-me-iam a razão deste senão.
Dir-lhes-ia temer bastante jogar as palavras fora, necessito delas todos os
momentos, são o meu pão de cada dia, especialmente pelas manhãs desde as sete e
meia até por volta da uma da tarde, teria problemas, ser-me-ia difícil
substituí-las por outras, não são capins que dão em qualquerzinho pedaço de
terra em terrenos baldios, não são chuchus que dão aos montes em regiões
serranas. Ririam de mim. Ririam, pois que a expressão “jogar conversa fora” não
significa, em verdade, não lhes dar valor, desperdiçá-las sem pensar no futuro,
significa esta expressão espontaneidade, liberdade da palavra, fala-se o que
quiser sem censuras, sem recriminações, sem objetivos e responsabilidades, sem
compromissos, é o que dá na teia que se fala. São momentos de descontração ao
lado de amigos, de pessoas queridas, de íntimos. Estou levando muito a sério as
coisas, estou precisando relaxar-me. Têm razão com esta fala. Mas por mais que
a expressão isso signifique não quer dizer que não vá se usar de muitas
palavras para falar de assuntos aleatórios, aliás nestes assuntos é que mais se
gastam palavras.
Contudo, ainda teria um jeito de aceitar o convite. A recusa não
significaria que me não sentiria bem com a companhia deles, sentir-me-ia
insatisfeito, incomodado. Ao contrário, seria com muito pesar que me recusaria,
eu que tanto gosto de meus amigos, dedico-lhes sempre que posso todas as minhas
atenções, aprecio bastante estar ao lado deles, honra-me e orgulha-me sobremodo
aprender com eles as coisas da vida e do mundo, não diria que são sábios, mas
são inteligentes e experientes, têm sempre a contribuir com as situações e
circunstâncias do quotidiano, são sensíveis e intuitivos.
Imagino todos os olhares voltados para mim, aquela espécie de sorriso
amareliçado, alguns de susto por não haverem jamais pensado que diria coisa
semelhante, outros por insatisfação mesmo por não terem nunca concebido que
seria eu capaz de tal acinte, tinham-me em boa conta, um indivíduo discreto, um
homem de lídimos princípios, outros por estarem esperando não uma
justificativa, uma explicação, mas pelo sentido que estaria dando à coisa,
alfim tudo o que digo tem um sentido escondido nas entre-linhas.
Se me convidassem para “botar as fofocas em dia”, outra expressão que
também é usada nestas situações de encontro entre amigos num restaurante para
uma cerveja, para um churrasco, significando falar das novidades, do que está
acontecendo, dos novos pro-jetos e sonhos, aí sim teria o maior prazer de
comparecer, não teria muita coisa a dizer, ultimamente as coisas estão andando
bem devagar, muitos mesmos, mas o que há de novidades supera o existente no
aqui-e-agora. Aliás, esta expressão é faca de dois gumes: há quem pense que com
ela o encontro será eminentemente eivado das coisas da vida dos outros, as
mazelas e picuinhas de muitos estarão sobre a mesa qualzinho dólar, naquela
expressão ingleza “put your dolar on the table”, significando, se não me falta
a memória, mostre-se, identifique-se, explique-se. Aliás, pensa-se com
freqüência que as mulheres é que são fofoqueiras, onde há duas mulheres
conversando pode-se concluir sem dúvidas ou medos que a vida de alguém com suas
picuinhas e pitis está presente, puro preconceito, discriminação. Em verdade,
os verdadeiros fofoqueiros são os homens, até mesmo sozinhos estão pensando na
vida dos outros, um modo de se justificarem de suas próprias condutas e
posturas espúrias.
Após esta explicação, devido aos olhares e sorrisos amareliçados,
compreenderiam o porquê de aceitar tão dócil convite. Marcariam o horário de
nosso encontro no Bistrô da Cida, por volta das oito e meia, sem tempo de
saída, sem limite de cervejas e aperitivos. Aí, desde as sete horas, quando
tomaria meu banho, poria a roupinha de ver Deus, passar os meus cremes no
rosto, loções no corpo, desodorante, perfume, e mesmo depois, sentado na minha
poltrona no escritório, ouvindo músicas, de preferência as de Bob Dylan,
estaria pensando quais as fofocas que botaria em dia, não me esquecendo de
nenhuma, o tempo de encontro seria bem esticado, tinha de preparar as fofocas,
as coisas minhas, e pensar também quais as dos meus amigos, com certeza muitas,
inúmeras, a vida deles não está andando tão devagar.
Uma das coisas que me deixara mais que feliz de minha vida, por triz não
saí pelas ruas e avenidas dançando a deus-dará, mostrando todos os meus
trejeitos, ornamentos e arrebiques nesta arte a todos os homens. Não o fiz.
Conservei com dignidade os meus princípios de sanidade mental, apesar de que
dançar além de ser manifestação artística faz muito bem, constitui uma terapia
corporal e espiritual. Preservei as minhas solenes e sublimes discrições. A
minha felicidade e alegria foram mesmo indescritíveis.
Na minha última viagem, reservei alguns CDs e DVDs, pondo-lhes dentro de
minha pasta para ouvi-los, quando estivesse sentado nalgum barzinho ou
botequim, enquanto trabalhasse com as digníssimas palavras. Não poderia deixar
de levar o de Bob Dylan. Aliás, trata-se da discografia completa do músico,
coisa bem difícil de ser encontrada. Na Yamacolor, loja de fotos e produtos de
fotografia, conversando com um dos funcionários sobre as minhas preferências
musicais, mencionei Bob Dylan e Deep Purple. Dissera-me que tinha a discografia
de vários músicos, inclusive desses dois. Mandei gravar em CD. Fiquei
conhecendo várias músicas de Dylan, que normalmente não aparecem em CDs, só
aparecem as tradicionais, as que realmente dão lucros às lojas e aos vendedores
ambulantes de produtos piratas. Ouço constantemente, e muitas vezes serviram-me
de inspiração para algumas considerações com as minhas palavras.
Pois bem... Levei os CDs na minha última viagem. No último dia, procurei
o de Dylan na minha pasta, não o encontrando. Pensei talvez haver deixado em
casa. Em verdade, se não me faltava a memória, havia ouvido única vez, preferi
ouvir as de Deep Purple e Pink Floyd. Chegando a casa, revirei o escritório em
busca de meu CD, estava solidificado, perdi o CD. Fiquei chateadíssimo. Tenho
outro, mas com as canções tradicionais. Não ouvi. E não tinha condições de
mandar gravar outro, pois o computador do rapaz da Yamacolor deu problema e ele
perdeu todo o seu acervo de músicas. Perdi, perdi. O que fazer? Uma grande
perda para mim.
Após uns quinze dias, lembrou-me que havia gravado este CD no
computador. Deletei por pensar que estava enchendo o computador de coisas,
tinha o CD, não precisava disso. Enviei para a lixeira. Nunca deleto a lixeira,
pois que são textos que trabalhei neles para a publicação, e eles têm os seus
valores inestimáveis. Encontrei toda a discografia de Dylan. Para comemorar o
achado, dirigi-me a um barzinho com o meu “lep-top”. Enquanto trabalhava com as
palavras, tomava cerveja acompanhada do aperitivo, ouvia as músicas mais
queridas, lembrando-me até que numa resposta que dei a uma digníssima senhora
que enfiou o bedelho onde não estava sendo chamada, reconstruindo um dos versos
de Masters of War, traduzindo, Mestres da Guerra.
Seria esta uma das novidades a contar para os meus amigos no encontro no
Bistrô da Cida para “botar as fofocas em dia”. Sabem que amo de paixão Bob
Dylan, admira-me bastante uma voz tão horrorosa, completamente desafinado, e
ser tão poética, realmente as suas líricas são fabulosas, lindas, maravilhosas,
são palavras de um apaixonado. Nalguns encontros meus com os amigos, encontros
rápidos, perguntaram-me se estava eu ouvindo as músicas de Dylan. São as
perguntas que me fazem constantemente: se estou trabalhando muito com as
palavras, se estou ouvindo Bob Dylan, modo e estilo deles de me deixaram feliz,
contente, lembrarem de minhas paixões e alegrias, o que sempre agradeço,
dizendo-lhes: “ Obrigado mesmo por lembrarem disso!”, respondendo eles que é
assim que se considera um amigo, lembrando das coisas que ele ama, gosta,
aprecia.
Seria esta a maior felicidade minha nos últimos tempos de minha vida. Se
não houvesse encontrado o CD, com certeza não estaria escrevendo este “bons
dias”, não teria inspiração, aliás ela jamais se re-velaria por a tristeza e
aborrecimento a impedirem. Por estar já escrito, leria para eles o texto, tendo
a certeza óbvia de que iriam gostar muito, pois que estou de volta com os
textos de expressões, ditados, adágios, que tanto apreciam, ao mesmo tempo que
têm aquele arzinho de sarcasmo, ironia, cinismo, são uma verdadeira lição. Este
então mostra como se deve usar as expressões com dignidade e honra, sem lhes
adulterar o sentido, sem lhes prejudicar nas entrelinhas e além-linhas.
Manoel Ferreira Neto.
(28 de janeiro de 2016)
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