*GRITOS, SUSSURROS E GEMIDOS* - Manoel Ferreira
A verdade singela, pura, inocente, no entanto, tem sempre a aparência
ambígua – um assobio, um murmúrio de águas vivas, ruído de fonte ou de cascata.
Posso ficar sentado por horas seguidas nesta poltrona, com as pernas para o
alto em cima da outra poltrona, olhando a trajetória da luz do sol nas
montanhas. Quem dera estivesse na Suécia, podendo contemplar não só as
montanhas, mas também os fiordes!...
O sol faz refletir um desenho artístico no papel envelhecido da parede
do quarto. Há o tic-tac do relógio que marca nove horas e doze minutos. Há uma
grande quietude em todo o quarto, cheio como está de tantas coisas raras e
irreais; num átimo de tempo, pode tudo transformar-se, pode tudo tornar-se
coisas absolutamente novas e reais, suficiente o acreditar nelas, crer na vida
que posso dar a elas.
Acho que seria suficiente se uma pessoa fosse amiga, sincera, fiel para
quem vive com ela. Carinho também faz bem. Bom humor, companheirismo e
tolerância – enfim, é necessário ser consciente de que os homens somos
imperfeitos. Ambições razoáveis a respeito do presente e do desejo de
realizações do outro. Se pudesse servir todos ingredientes assim... então já
não teria tanta importância o amor.
Óbvio que é apenas o medo e o pretensioso bom-senso que me faz acreditar
em fronteiras. Não existem fronteiras. Não existem, embora algo grite e
sussurre no íntimo, dizendo-me que isto é um desejo de não existirem
fronteiras, mas existem; não existem, nem para os pensamentos, nem para os
sentimentos, nem para as mais puras intuições e percepções. Quem sabe, desejo
sim acreditar nisto, é a angústia que fixa as fronteiras?!...
Conheço a voluptuosidade do vôo e do pairar da águia nesse lugar nenhum,
macio e claro, para onde a alegria me arremessa antes de conhecer o êxtase e o
logro do êxtase. Para mim, o ser humano é uma criação indescritível, tal como
uma idéia incompreensível, um pensamento ininteligível. No ser humano tudo
existe, do mais alto ao mais baixo, do mais sensível ao absolutamente
insensível, precisamente como na vida. E, seguindo esta idéia que elaboro e
crio, dando-lhe vida, o ser humano é a imagem de Deus e em Deus tudo existe,
tudo, como se fossem forças enormes.
Confesso saber que esses desejos são tolos. Relato, embora num espaço
muito pequeno, devido às circunstâncias, as lutas que travo com todos os
desejos, a vontade de um ínfimo minuto de daqui a pouco. Nada omito, nada
minto. Sinto-me capaz de dizer tudo, inclusive as dores mais profundas, aquelas
que as palavras não alcançam, mas que existem, e são a chama ardente de um
sonho mais atirado.
Sinto-me muito mais forte e mais independente. Poderia realmente ser
útil a quem está em dificuldades. Será mesmo que estou convencido de que tenho
uma missão que não inclui nem a dissimulação nem as hipocrisias; é algo que
transcende a condição humana,; se não acredito nisto, poder transcender a
condição humana, superando estas coisas tão cretinas e idiotas, como vou poder
continuar vivendo? Tudo é insípido, inóspito sem um sonho maior que tenha por
objetivo encontrar além dos limites a felicidade.
Consigo confessar quaisquer segredos, mesmo que muito pouco deles tenho
a capacidade de entender, patenteio o que quer que haja, relevo os medos e
angústias que são partes de uma criação. Estou cansado, terrivelmente cansado.
Se tivesse coragem, romperia com tudo e me mudaria para uma choupana nalgum
abismo da montanha ou talvez pedisse a alguém para varrer as ruas da cidade.
Exibo as feridas. Descrevo como atravesso as águas, qual uma criança que sai se
arrastando pelo chão, enquanto a mãe conversa com a amiga, e como o rio zomba
de minha intenção de retornar ao centro da cidade.
Brilham lâmpadas vermelhas e sinais de “pare” à minha volta. Não acho
apenas que assim deva ser. Não me declaro satisfeito. Sinto uma grande peso,
como se fosse uma tristeza. Se me tivesse permitido pensar, sem ficar com a
consciência pesada, então teria sabido que tudo o que digo e faço está errado.
A minha tristeza é, creio, muito especial. Por isso, venho até ao quarto,
sento-me à poltrona. Enquanto não pronunciar a palavra que intenciono, que
desejo, a minha tristeza é como um sonho irreal. Pronunciando-a, então, terei
manifestado a minha tristeza.
Há um comportamento típico entre nós, comportamo-nos como rivais,
perseguimos nossos ideais. E, no entanto, tudo isso não passa de uma
hipocrisia, um jogo entre nós, que nos enlaça intimamente, que nos acende a
todos. Tudo não passa de pura fantasia, tudo tem uma dimensão a mais, um
sentido mais profundo; tudo é jogo e símbolo...
Práticas espirituais e a imagem da morte são uma combinação sobremodo
banal. A maioria dos corpos humanos são mortos, embora esta concordância não
esteja correta, mas necessito de dar uma ênfase, com uma cabeça falante e
extremidades sacolejantes. Algo se passa com os lábios. Percebo que têm uma
forma especial. Continuo olhando-me a todo instante, sem perder de vista um
único detalhe. Vejo-me e formo um sorriso quase imperceptível .
O pulso de estátua fascina e surpreende, diante do retângulo de azul
resplandecente por onde a morte vai jorrar um segundo depois. Esse azul de
morte, esse azul de neve – o céu desta manhã fica gravado na retina como uma
catarata luminosa. É essa luz, essa chama fixa de uma cegueira, lúcida demais,
que imagino ser o brilho dos olhos.
Em verdade, inda me esqueço de quem está a pensar, sentir, ser, sou
ainda eu, esqueço-me de que estou só, que ninguém pode ser por mim, nem um
deus. Eu só, irredutível, princípio e fim, fechado, único e para sempre. Quê
alucinante!... Mas assim mesmo, como é fascinante imaginar-me em ti, na tua
aparição, na tua fulguração.
Manoel Ferreira Neto.
(30 de janeiro de 2016)
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