**LUZ DO SILÊNCIO E ÍNTIMOS REGOZIJOS** - Manoel Ferreira
Dir-se-ia um sonho magnífico, uma cripta de encantamento. Dir-se-ia um
verbo mágico, um tabernáculo de esplendores. Dir-se-ia um "amar"
místico, mítico, in-trans-itiva espiritualidade, in-fin-itiv-idade
Por toda a parte há uma ópera invisível, feita de aves trinando melodias
e canções diferentes, cujos ritmos e melodias são as belezas do uni-verso, as
divin-itudes da natureza, que se diluem com freqüência num ritmo tão acorde tão
sereno que é quase o silêncio por mim verificado, não se me lembrou quando, e
isto aqui não importa, importa sim, enquanto a-nunciações trans-cendentais do
ser e do verbo, mas agora mais vivo, mais alvoroçante e integrado no esplendor
da manhã.
Só a água, presa nos lagos ou deslizando nos rios, quebra, com a
abertura de clareiras, o emaranhado apenas na aparência uniforme. No saber e
avidez de cultura, na filosofia rebelde, quem sabe até nefasta, nebulosa, na
experiência prática de algumas tendências e propensões de cores e tons múltiplos,
no apreço magnânimo pelo bem-estar humano, na indiferença e tudo que o tempo
estabelecera em favor dos homens, na fé e infidelidade, no que necessito e no
que de antemão sobejo, a efervescência da mocidade e da paixão, o brilho da
imaginação dotam-me de lustro falso que a todos seduz e engana.
Essas naturezas transparentes decepcionam muitas vezes quem as está
observando – as pedrinhas no fundo da fonte sempre estão mais distantes do que
imaginamos.
Esqueceu-me o som que ouço da água caindo no tanque, onde a senhora está
a lavar a roupa de toda a semana, e só movido apenas pela tendência inevitável
do pensamento cheio de entusiasmo e emoção, as idéias ávidas de volúpias a se
derramarem no primeiro recipiente das utopias da verdade, a única que ec-siste,
vive, a que trans-cende as con-ting-ências e concilia-se com o ser.
Se cada geração pudesse vislumbrar a sua identidade ao longo dos anos e
das situações, esta renovação constante das conquistas e glórias seria melhor
do que as reformas por que passa a sociedade. Mesmo os nossos edifícios
públicos, capitólios, palácios episcopais, tribunais, assembléias e igrejas não
deveriam ser feitos em pedra e tijolo. Seria preferível que se desmoronassem a
cada vinte anos, insinuando à comunidade um exame de seu interior, de sua
consciência e do lugar que ocupam neste mundo, o que são, o que representam.
De duas em duas décadas, não me ocorreu memoriza-las, se algum dia
necessitasse de me referir a elas, poderia doar dados exatos e comprobatórios,
algumas famílias se afundam na grande e obscura massa da humanidade, tudo
esquecendo sobre os seus antepassados, raízes profundas que lhes habitam. O
sangue humano, se nada há que corrobore estas palavras, para se manter fresco,
deve correr por veias ocultas – a água que é conduzida por subterrâneos segue o
mesmo princípio, manter-se fresca...
Para alguém ativo e especulativo, não há maior tentação do que dominar o
espírito humano; nenhuma ocasião mais sedutora para lhe tornar o árbitro do
destino, quaisquer que sejam os defeitos de natureza e educação, e a despeito
do desprezo e irreverência a credos e instituições.
Momento antes, não sabia quê se insinuava ao próprio conhecimento por
intermédio de outrem, tinha medo de descerrar as pálpebras. Há algo de
escondido e esquecido da humanidade, tão profundamente enterrado sob a pilha
escultural dos feitos ostensivos que a vida diária não mais pode dar conta.
Acaricio os projetos, como toda a gente o faz, quem sabe mais brilhantes
que os de todos. Assim faço, pelo menos esta manhã, enquanto estou na cama,
numa agradável sonolência, planejando os afazeres do dia e especulando as
probabilidades nos próximos vinte e cinco anos. Com a consciência de quem
represento e os raros contratempos que me trarão a vida.
Se estivesse dormindo, que paz de consciência e que perfeita saúde
revelaria o sono leve, sem sobressaltos, sem contrações nervosas, murmúrios ou
mesmos irregularidades respiratórias.
Se tenho algum tempo para despediçar, por que não vou ao restaurante,
como costumo fazê-lo, para sentar-me à mesa, tomar um drink, ouvindo o som de
vozes que falam ao mesmo tempo, sendo difícil reconhecer o assunto que tratam,
deixando escapar uma frase oportuna, que será o dedo de prosa a ser entabulado.
O crepúsculo vai escurecendo os cantos da sala. As sombras da mobília
alta tornam-se mais profundas e mais definidas; depois, espalham-se, perde-se a
distinção dos contornos no conjunto escuro do esquecimento que se arrasta sobre
os vários objetos e sobre a figura humana sentada entre eles.
Ser-me-á possível imaginar que formidáveis instrumentos são as casas
velhas nas mãos do vento! Ruídos estranhos cantam, suspiram, guincham, martelam
pesadamente em algum quarto distante; depois, correm pelos corredores, como
pisadas, sobem e descem as escadas, num ruge-ruge de sedas farfalhantes. A
ninguém apeteceria estar no seu interior, nesses momentos!
O trabalho em que me ocupo tem o encanto de um brinquedo. Como os anjos,
nunca me canso, às vezes enfastio-me, não encontrando mais disposição para
continuar, noutra ocasião saberei renovar os estilos e modos; os movimentos
expandem-se sem esforço em outros minutos e segundos.
É evidente que a raça se degenerara, como muitas outras raças de nobres
e vassalos, pela escassez de cuidados para mantê-las puras. Mantenho vivo, vez
por outra dis-ponho-me a perscrutar os devaneios e íntimos regozijos, não por
prazer, mas para que o mundo não perca tão admirável crepúsculo: os homens
olhando-se longa e mutuamente, algo de estranho nas pupilas, dizendo palavras,
como para comunicarem suas opiniões sobre o benigno sorriso da original luz do
sol e claridade do céu, onde se encontra maravilhoso e profundo conhecimento.
Que instrumento é a voz humana! Como corresponde às emoções da alma.
Estas poucas palavras, que se me anunciaram ao espírito os devaneios e íntimos
regozijos, têm música misteriosa, melancolia, cujo tom parece jorrar das
profundezas do coração, moduladas nas mais simples emoções.
Assimilo alimentos para o espírito através de experiências e vivências
que passariam desapercebidas a pessoas em maior contacto com o mundo. Tudo são
atividade e transformação para quem passa por novos caminhos, após outros que
registrados estão na memória.
Manoel Ferreira Neto.
(30 de janeiro de 2016)
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