**CÓ-CÓ-RI-CÓ-CÓ** - Manoel Ferreira
Bons dias!
As certezas do coração - quantas são elas, digo cofiando a suíça
esquerda, braço direito sobre a mesa, mão para baixo, olhinhos perdidos na
parede do escritório, distantes, ouço-me apenas respirar -, não tenho a mínima
noção, sei que são inúmeras, as estrelas do céu são poucas diante delas, não
causam necessariamente a alegria, podem fazer e fazem rir à beça e “com borra”,
desculpe-me o palavreado. As certezas da razão, ai estas, diferentemente
daquelas, fazem verter lágrimas de desespero e agonia, a vida falta de por
baixo dos pés, corpo sem alma. Esse fato, por si só, não por adjutório alheio,
vindo de fora, confere já um sentido a estas palavras que tenho a pachorra de
registrá-las com orgulhos da estirpe, não por intenção de enfatizar, por ser
real, em verdade.
Perguntar-me-á, naquele seu jeitinho tão peculiar de pensador de escol;
sei lá, parece-me estar imitando Sócrates, ou deseja convencer-me deste modo,
uma tramóia de sua parte, isto lhe é peculiar, que certeza tenho eu, se as do
coração me fazem rir, se as da razão me fazem chorar, neste mundo ou se ri ou
se chora, é a sina humana, prolonga-se pelo coração ou pela razão, creio que se
chora mais do que se ri, vive-se mais à luz da razão. Responder-lhe-ei que,
in-vestigando a critério isto, fiz questão de riscar de meu vocabulário o termo
certeza, preferindo viver todas as incertezas que me são de natureza e
condição, pelo menos não vou rir nem chorar, não vou envelhecer precocemente,
não vou me sacrificar com angústias e tristezas infindáveis, apenas seguir os
meus passos caminhos a fora. Quer coisa mais gostosa que seguir a estrada a
fora, fazendo “da poeira o meu camarada”? Não concebo nada igual a isto.
Mas, antes de ir mais adiante, enfiar ambas as mãos na massa com todas
as volúpias e êxtases presentes, quero pôr-me novamente em regra com você, e
desde o início já percebe que vem aí chumbo dos mais grossos, vem aí deboches
de todos os naipes, que são a minha marca registrada, elitizando “trade mark”,
você gosta disso, não para lhe orientar na leitura, mostrar-lhe os caminhos que
deve trilhar para chegar às mesmas conclusões minhas, isto é ridículo, nem para
convencer ou persuadir, para justificar as idéias ou explicá-las, mas para me
sentir mais sereno e tranqüilo e real-izar o que pensei, o que senti, depois de
haver acordado e lembrado do sonho que tivera em que você me havia feito
elogios os mais di-versos, e depois sem quê nem porquê tirou sarro de meus
valores, rindo na minha cara, riso de poder e superioridade. Disse-lhe, então:
“Sente aí, vamos ver quem é quem nesta história. O título é “có-có-ri-có-có”,
escreva e eu escrevo”. Senti-me tranqüilo, sereno no sonho. Você é que se
espantou com a minha incisividade dizendo-lhe para sentar-se e escrever, e
quando se sentou, olhou ao redor, estávamos num restaurante, estava cheio de
gente, a maioria de suas relações pessoais e íntimas, o seu namorado estava à
sua direita, também estava presente aquele capacho que você sempre traz a
tiracolo, do outro lado da mesa, frente a frente, ambos riam a deus-dará.
Preocupei-me em caprichar na letra, escrevi o título, sabe que a minha
caligrafia causa medo só de olhá-la de soslaio, assinei embaixo, comecei, sem
qualquer esforço, sem pensar. Não me lembra o que aconteceu, a escrita fora
interrompida, havia escrito um parágrafo apenas, questão de uns dois minutos.
Havia alguém de meu lado, tomou-me a folha de papel, dizendo: “Ele é ele. Não
se discute”, não entendi as razões de haver-me achincalhado, menosprezado, não
entendi o porquê de ter havido a interrupção, sei que o “có-có-ri-có-có”
significa “aqui o galo canta mais alto”, e sei o que posso fazer disto, com a
imagem que de si faço, sentado numa poltrona, pés sobre a mesinha de centro,
janela aberta, deixando a luz do sol entrar com toda propriedade, lendo, e com
a amizade que por mim nutre sinceramente, o que de antemão às revezes já
agradeço e rendo louvores, um dos mais inestimáveis privilégios. Há algum tempo
não lhe envio simples palavrita, com este sonho, afianço-lhe, tive a famosa
inspiração de tomar da pena, escrevendo-lhe esta missiva de re-versas idéias e
intenções, vai-lhe gastar tempo inestimável para compreendê-la e entendê-la com
distinção, talvez até necessite alguém lhe traduza em nível de sua
inteligência. Afianço-lhe que é a derradeira missiva a si escrita por mim.
Enquanto me for possível, enquanto houverem todas as condições e
possibilidades, quero e desejo ainda fazer por esta nossa relação tão especial,
tão tão, a única coisa que podemos fazer quando algo declina em nossa vida:
torná-la nítida e transparente.
Já lhe respondi a célebre frase: “Você tem ojeriza da imprensa”, que
você me lançou à cara várias vezes, de modo ríspido e incisivo, como se a
imprensa fosse uma das maravilhas do mundo, se por ela sinto ojeriza é tão-só
por ressentimentos e mágoas. Fiz-lhe saber, através mesmo de missiva, que não
sou destes que por minhas vontades e desejos não serem respeitados, não serem
real-izados, não empunho todas as armas e saio atirando aos ventos
completamente ensandecido, babando, respiração ofegante, olhos faiscando, como
fazem os cães no calor, ou seja, dependuram a língua fora da boca, sem quês nem
porquês, o que não tem outro nome senão “vingança”, motivada pelo orgulho
próprio ferido, pelas vaidades desconsideradas. Onde é que está aquilo de “a
boa vingança é servida em prato frio”? O prato seu está sempre pelando de
quente, nunca se esfriou. O cargo iria solidificar seus valores, seria mais
vangloriado e laureado por seus asseclas e cúmplices. Você fizera um pedido de
cargo público, antes de o seu pedido ser aceite comemorou com os amigos a
realização, e lhe foi recusado, pegou do arco e flecha e saiu mandando flechas
em tudo que encontrava pela frente, isto para se justificar a si mesmo, as suas
vaidades e orgulhos, justificar aos amigos a sua conduta e postura indecorosas,
comemorar algo que não era real, e jamais haveria de ser. Coisas da imprensa.
Sou consciente de meus valores, de minhas virtudes, não preciso coisas desta
estirpe, orgulhos, vaidades. Mesmo que precisasse, não os sentiria feridos,
cada um pensa e age do modo que melhor lhe apraz. Nunca, jamais, precisei da
imprensa. Mesmo que houvesse precisado, meus desejos não houvessem sido
realizados, não me armaria de arco e flecha contra ela, ser-lhe-ia indiferente.
Quem é consciente, não precisa usar de muletas ou bengalas como você. O que não
consigo engolir da imprensa é a sua hipocrisia deslavada, seu cretinismo, sua
imbecilidade. Reclama da liberdade de expressão, tem tanta liberdade que só diz
asnices, tudo lhe é permitido. O que quer mais? Libertinagem? Ela já é
libertina.
Hoje quero unicamente responder ao sorriso impaciente com que você
acolhia a palavra inteligência, como se eu fosse um perfeito imbecil por ter
ojeriza da imprensa, ostentava ser inteligente, não o era. O que você me dizia?
“Com toda a sua inteligência, você nega a si próprio. Prefere lutar com todas
as dificuldades, de os seus sonhos serem ou não realizados, fazendo das tripas
o coração para obter reconhecimentos, buscando uma verdade improvável. Quando,
se se aliasse à imprensa, se se engajasse em seus propósitos e interesses,
ser-lhe-ia bem mais fácil, poderia refestelar-se numa rede no alpendre de sua
residência, teria um renome sem limites. Deveria colocar a imprensa antes da
verdade, e para além do desespero” – não me lembra bem qual era o assunto de
nossa conversação, sobre o que falávamos, mas isto dissera, fiz questão de
memorizar palavra por palavra: “Isso quer dizer, também, acendrado amor à
imprensa livre e, acima de tudo, às aspirações do povo”. Aparentemente era
verdade. Tudo se torna bem mais fácil e tranqüilo, quando se tem a imprensa em
mãos, tem todos os meios e recursos para divulgações, o espaço dela está aberto
em todas as direções, a imprensa aliada à mídia os resultados são
indescritíveis, da noite para o dia usufrui-se tudo, torna-se celebridade. Sei
disto. Fogo de palha, em questão de mínimo tempo tudo é consumido.
Mas, e também já lho disse, riu com a minha entonação da fala: “Quem que
diz que na vida tudo se escolhe? O que castiga, cumpre também”, insinuando que
fazia as minhas citações de personalidades eternas e universais no universo da
cultura e das artes. Pensei em lhe perguntar de quem era a frase, em que livro
estava, desisti por saber que não teria condições de responder-me, o autor não
é do seu bico, mesmo porque não poria em suas mãos o que desejava, isto é, se
uso frase de outros para esclarecer as minhas idéias e pensamentos é que não
tenho argumentos próprios para fazê-lo, está atitude é sua e não minha. Não
escolho lutar, não escolho as incertezas, devido às ojerizas. Em verdade, a
realização através de esforços, de lutas, de angústias e incertezas os mais
di-versos, resultam em felicidades, alegrias, aquele gostinho de dizer que
venci por conta própria, faz-me ter consciência de minhas capacidades próprias,
de minhas perseveranças, de minha fé e esperanças. O que castiga é que, para
mim, tem valores. É de minha índole gostar, amar, venerar as coisas difíceis,
complicadas, complexas. O que vem de fora não revela valor algum, ao contrário,
mostra com eficiência a inexistência de valores, é o que acontece com a mídia e
a imprensa. Se você passar no funil todos os valores artísticos, intelectuais
divulgados pela mídia e pela imprensa, vai perceber que pouquíssimos são os que
realmente têm dons e talentos.
Vejo que volta a sorrir. Você sempre desconfiou de minhas palavras,
nunca pude entender isto. Sei muito bem que você escolheu a carreira da
imprensa por ser mais fácil, satisfazia mais as suas fantasias de sucesso, de
fama, nela os seus caminhos seriam bem mais curtos, não iria precisar lutar com
unhas e garras, sentir-se-ia logo, logo livre de suas origens humildes,
simples, de todos os preconceitos e discriminações sofridos ao longo de sua
vida, mesmo de suas incapacidades de lutar sozinho, de vencer com seus próprios
esforços, suas vaidades e orgulhos seriam concretizados com distinção. Sua
escolha jamais foi real, verdadeira. Se sempre desconfiou de minhas palavras, é
que somos nisso completamente diferentes, não preciso justificar nada, aceito
com orgulho o meu destino, a pesada cruz que tenho de carregar ao longo de meus
caminhos.
Tentou sempre empurrar-me pelo mesmo caminho que escolheu, no qual as
origens se envergonham das origens, a inteligência se envergonha da inteligência,
os dons e talentos desconfiam dos dons e talentos, a capacidade negligencia os
recursos. Já nessa altura eu não o seguia, aliás nunca o segui, sou quem faz a
minha história e não outros. Se fosse hoje, as minhas respostas teriam sido
mais convictas, estou escrevendo a resposta que lhe teria dado diante de seus
questionamentos.
“O que é a verdade?”, perguntava-me você, com aquela atitude de quem a
encontrou e se sente tranqüilo e sereno, realizado, esta verdade sempre foram
as facilidades que lhe proporcionou, acima de todas a liberdade de suas origens
simples e humildes, na imprensa conviveria com a nata fina das personalidades e
intelectualidades, com os homens sensíveis. Pois lá vai: “O que você tem contra
a origem simples e humilde de um homem? Por que não se aceita como você é?” Não
responda de supetão. Pense, repense. Não tem de responder-me. Responda a si
mesmo, sentir-me-ei realizado com isto. A você mesmo pode dizer sua verdade,
ninguém vai ouvi-la, a menos que não aceita saber de suas verdades, prefere
viver na mentira, na farsa, na falsidade, na hipocrisia, na cretinice...
O que é a verdade? Obvio que a não sei, mas sei, pelo menos, o que é a
mentira: é exatamente isto o que você sempre viveu. O que é o espírito? Conheço
o seu oposto, a hipocrisia. O que é o homem? Quanto a isso, alto lá, o andor é
de barro! O homem, na minha concepção, fruto de minhas experiências e
vivências, de minhas observações e questionamentos, é a força que acaba sempre
por derribar os tiranos e os deuses. O homem é a força da evidência. É a
evidência humana que tenho de salvaguardar, e tenho esta convicção porque o
destino do homem e o destino de seus sonhos se encontram ligados estreitamente.
Este mundo possui pelo menos a verdade do homem, e é dever dar-lhe razão contra
o próprio destino. E essa razão não é outra senão o próprio homem. É ele que
fará com que seja salva, se quisermos, a idéia que fazemos da vida. O seu
sorriso e o seu desdém vão perguntar-me: “mas o que é salvar o homem?” E eu
digo-lhe com toda a força de meu ser: é não o mutilar, dar todas as
oportunidades a essa justiça que só ele é capaz de conceber.
Se nada tivesse sentido, você teria razão. Mesmo que superficiais,
ridículas, imbecis, que são a imprensa e a mídia, elas dão sentido a alguma
coisa, dá poder aos seus adeptos e asseclas, dá sentido ao nada. Mas há
qualquer coisa que conserva um sentido. E, para mim, o que dá sentido a tudo na
vida é a luta por realizar os sonhos e utopias, são os esforços, a
perseverança, a insistência, é a entrega absoluta à vida.
O que o leva a dizer que o homem não representa nada, que a alma pode
ser aniquilada e que, mesmo na mais insensata das histórias, o dever do
indivíduo não pode ser outro senão a ambição do poder, como resultado e
conseqüência dele as realizações dos orgulhos, das vaidades, das prepotências,
dos sentimentos de que nada há que possa ser mais importante na vida do que o
poder, e o poder, é óbvio, joga na lixeira a simplicidade, a humildade, os bons
princípios, e a sua moral o realismo da conquista dos desejos e vontades.
Nunca será de mais repetir-lhe: é aqui que me separo de você. Concebo a
carreira artística como algo em pé de igualdade, ombro a ombro, com outras
grandezas: a amizade, o homem, a felicidade, a nossa ânsia de artistas de
liberdade, de justiça, de conservação dos sonhos e utopias, de busca de
verdades que nos encaminhe pelas veredas da vida, de con-templar a sede de
conhecimento, o ser que nos habita, e que temos responsabilidade de encontrá-lo
através de nossas obras e nossas esperanças de outros tempos e realidades, de
outros questionamentos. Isso obriga a ser exigente com ela. Não me torno
escravo dela, nem desprezo coisa alguma por causa dela, sobretudo as minhas
origens, que também são simples e humildes, sempre que posso menciono-as, sem
qualquer vergonha, sem qualquer sentimento de inferioridade. Espero
pacientemente por uma resposta de minhas lutas e esforços, no meio da dor, do
sofrimento, a arte nunca arranca isto dos homens, no meio da alegria de poder
combater ao mesmo tempo por aquilo que amo, estou disposto a morrer por ele.
Você, pelo contrário, combate toda essa parte do homem que é a luta. Os seus
sacrifícios não têm alcance porque a sua hierarquia de valores não é justa e
porque os seus valores não encontram em linha de conta. Jamais foi capaz de
pensar com percuciência que a origem do artista é a obra, a obra é a origem do
artista.
Não é só o coração que você atraiçoa, e a inteligência é capaz de
vingança... Você não paga o preço que lhe é devido, nem o pesado tributo que a
lucidez exige.
Manoel Ferreira Neto.
(28 de janeiro de 2016)
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