**À SOLEIRA DA ABSOLVIÇÃO** - Manoel Ferreira
Bons dias!
Saindo de uma rua, entrando em outra, saindo de outra, entrando em
outras, às vezes parando para observar as vitrines das lojas, para tomar um
suco de jaca bem geladinho numa lanchonete, calor às portas do inferno,
cafezinho em qualquer botequim de esquina, antes de fumar um cigarro, Terezinha
Ri-bés andava perdida e angustiada, sem rumo, sozinha com seus problemas,
pecados, pecadilhos e sofrimentos di-versos. Sentia dores inestimáveis, se
dores fizessem subir em postes de energia elétrica, isto ela faria, não sabia
mais o que fazer de sua vida, tudo estava de cabeça para baixo.
Não que fosse infeliz em seu casamento. O marido fazia das tripas
coração por ela, transformava água em vinho francês de primeira qualidade e
grife, para comemorarem o seu aniversário, o aniversário de casamento em taças
chiquérrimas, o salário de vereador dava para ter do bom e do melhor, o tim-tim
antes do beijo meigo e apaixonado, aquele verdadeiro chupão, dava-lhe tudo que
desejasse, antes de imaginar um vestido lindo de grife, de uma boutique de
shopping, estava ele chegando com o embrulho de presente, com um cartãozinho
cor-de-rosa com palavras poéticas e amáveis - até lhe dissera que deveria
escrever uns poemas e sonetos, tinha veias, recebendo como resposta só se
fossem veias secas, ela era muito gentil e amável -, uma rosa branca como
ornamento, o arrebique era o abraço terno e carinhoso. Estava sempre presente
em sua vida, levava-a a todos os lugares, especialmente a bailes no Curvelo
Clube, para dançarem tão colados que o vento tinha de dar voltas para passar,
entre eles não era possível. Ouvia-a nos momentos de tristeza e angústia sempre
com palavras dóceis, se estava insone e o agarrava, passando a sua perna na
sempre esquerda perna do marido, o braço estendido no seu lombo, para tentar
conciliar o sono, ele acordava, oferecia-lhe o peito como colo, cafuneava os
seus cabelos com carinho e ternura. Cumpria ipsis litteris o que dissera ao
padre, quando se casaram. Era uma mulher feliz; se todas as mulheres fossem
felizes como ela, amada e idolatrada além do bem e do mal, a vida conjugal
seria um mar de rosas.
Desde o casamento, não mais confessou, não comungou, freqüentava a
igreja assiduamente, assistia à missa das sete na matriz de Santo Antônio, nem
Liz Taylor vestia-se tão bem, o que era objeto de sussurros por toda a igreja,
invejas, ciúmes e despeitos rolavam durante toda a celebração. Não faltava a
uma. Sentia-se abençoada para todos os dias da semana. Às sextas-feiras, no
crepúsculo, antes da Hora do Ângelus, rezava dois terços aos pés de Nossa
Senhora das Graças.
Era tempo de Páscoa, estava pensando em confessar, por isto havia saído
de casa logo após o almoço, comungar no Domingo de Páscoa. A confissão começava
a uma da tarde, o padre esperava algum fiel a mais até às quatro e meia. Andava
fazia duas horas e meia, em uma hora terminaria a confissão.
Seria que, andando pelas ruas, saindo e entrando em ruas, elencava os
seus pecados e pecadilhos todos, distinguindo os capitais dos veniais? Seria
que eram tantos e à luz de di-versas classificações era necessário saber dos
mais sérios e comprometedores que poderiam ser barreira para entrar no paraíso
celestial no Juízo Final? Se fosse confessar todos os pecados, a confissão só
terminaria no horário que o galo canta, às quatro e meia da madrugada. Duraria
doze horas, o padre bocejando, pescando piaba, o corpo todo dolorido por tantas
horas sentado, mas tinha que absolvê-la, o dogma da Igreja diz que o padre só
pode absolver, quando o fiel terminar de contar os pecados, mesmo que demore
séculos e milênios, mesmo que os tempos terminem antes – se fizer antes, a
responsabilidade será sua, por ela responderá no Juízo Final.
Terezinha Ri-bés, já tendo andado por todas as Belas Vista, a de cima, a
de baixo, a do meio, a das adjacências, passando por todas as suas ruas e
becos, dirigiu-se à igreja. Estava decidida, iria confessar-se. Só assim
poderia sentir-se melhor, não havendo tanta angústia e tristeza em seu peito,
tantos sentimentos de culpa e remorso em seu pobre coração, poderia assim
sentir-se in totum feliz e alegre, cheia de prazeres e volúpias as mais
inúmeras. Sentou-se no banco primeiro frente ao altar, frente à imagem de Nossa
Senhora das Graças, rezou duas Aves-Maria e um Pai-Nosso. Olhou em direção ao
confessionário. Uma pessoa estava ajoelhada no confessionário, duas outras
esperando, não havia ninguém na igreja. Ela seria a terceira e última a ser
confessada pelo padre Antônio José de Jesus.
Enquanto esperava a sua vez de ser confessada, elencou os pecados mais
sérios, colocou-os em ordem, conforme a sua consciência e sentimentos, conforme
as culpas e remorsos. Seria prática e direta, mostraria todos os seus
arrependimentos e remorsos, desejos e vontades de tomar outros rumos em sua
vida com a esperança de todas as suas angústias serem extintas com a
determinação de mudança, transformação.
Hora de confessar-se. Fez o sinal da cruz diante da imagem de Nossa
Senhora das Graças. Dirigiu-se ao confessionário, de cabeça baixa, rezando o
Credo.
- A senhora costuma assistir à missa? – perguntou o padre, fazendo um
esforço daqueles para não bocejar, estava cansado, não fizera a sesta naquela
sexta.
- Sim, padre. Não perco uma missa das sete aos domingos. Essa é, no meu
parco conhecimento das coisas, a minha maior virtude nos âmbitos cristãos, o
meu valor maior à luz da cruz e da cristandade – sentiu-se feliz, a realidade
da confissão estava trans-cendendo aos desejos da simples absolvição.
- A senhora faz suas orações à noite e pela manhã? – indagou o padre,
muito às escondidas espreguiçando-se a rigor e categoria.
- Sim, padre. Às sextas-feiras de todo ano letivo e não letivo vou à
matriz de Santo Antônio e debulho as contas de dois terços. Meu marido já me
acordou por estar a rezar dormindo. Rezo sempre, só não vou rezar dentro da
sepultura, o que seria um absurdo enorme, já não é mais necessário, terei ido
para o inferno aprazeirar-me com as chamas e a companhia das almas penadas ou
para o paraíso celestial curtir as belezas e maravilhas da natureza.
- A senhora dá esmolas aos pobres?
- Quase nunca, padre. Só quando estou cansada de umas certas roupas. Dou
para uma velhinha que tem um brechó no fundo de seu casebre. Em mãos dela só
compram os que têm grandes fortunas, o que ela ganha com as minhas vestes dá
para comer caviar no almoço e na janta. Às vezes, dou um prato de comida para
uma mendiga aos sábados.
Aquela mulher era alguma atriz? Estava aos seus pés e juntas sendo
filmada? Olhou de soslaio de entre a cortina do confessionário, ninguém dentro
da igreja, não dava para olhar fora da igreja, havia um biombo à porta. Não era
possível filmar com um biombo no meio do caminho, nenhuma câmara tinha o poder
de passar dentro do biombo e captar todas as imagens e as palavras. Não, não
estava representando, não era atriz, res-pondia às suas perguntas de modo e
estilo sincero, conforme suas experiências e vivências, como desejava ser
absolvida, Deus, Maria Santíssima, Espírito Santo e Jesus lhe con-sentissem o
perdão.
- Mas agora me diga: a senhora é fiel ao seu marido?
Terezinha Ri-bés silenciou-se, após tossir seco. O seu desejo era
levantar-se do confessionário, picar a mula daquela igreja, sem olhar para
trás, ir para casa, tomar um banho gelado, fazer uma gemada, tomá-la, e depois
assistir a algum programa na televisão ou ouvir músicas, ouvir músicas de
Roberto Carlos, especialmente Jesus Cristo. Mas não. Não podia fazer isso.
Tinha de terminar a sua confissão. Para isso havia saído de casa, andado pelas
ruas e becos todos do bairro Bela Vista.
Devido a não-resposta de imediato, padre Antônio José de Jesus pensara
que devido a estar sonolento, cansado, ela não teria ouvido direito, falou em
tom de sussurro, engrolou as palavras, não foi entendido. Estava quase pedindo
a ela que voltasse no outro dia, sábado, ele a confessaria em caráter especial
às nove horas, mas não estava em condições de confessar ninguém, estava muito
cansado, mas não o fez, não podia fazê-lo.
- A senhora é fiel ao seu marido, minha senhora? – as palavras foram
mais que claras, o tom de voz bem audível.
- Nisso eu sou boa, padre...
- Boa... Como assim? Não entendi.
- O senhor não sabe o que é ser boa nisso? Faço tudo para satisfazer o
meu marido, ele gosta de ser muito bem servido, serviço completo.
Entendeu bem o que ela estava dizendo, mas também entendeu que ela
estava querendo tripudiar, havia mato atrás daquele coelho, se fosse o que
estava imaginando, não a absolveria, pecado que não absolve é adultério, mas
sugere que o fiel procure outro padre, talvez seja absolvido.
- Não estou perguntando, minha senhora, da sua atuação na cama com o seu
marido. Não é isso. Estou perguntando se a senhora pula a cerca.
- Lá em casa não tem cerca, padre. Tem um portão de ferro e um muro bem
alto com fios elétricos, o índice de roubo em nossa cidade é muito grande,
temos de nos proteger, o senhor entende.
- A senhora está mangando de mim? – Terezinha Ri-bés achou bem estranho
o padre estar usando gíria no confessionário, isto não era da índole de padres,
usam um Português de ad-mirar um doutor em Língua Portuguesa. Quem usava este
termo era um nordestino que morava ao lado de sua residência.
- De jeito nenhum. Respondi ao que o senhor estava perguntando. Se eu
pulava a cerca? Como posso pular cerca se não há cerca em minha casa. Poderia até
pular o muro, mas é muito alto, eu teria de usar uma escada.
- Quero dizer... – gaguejou, o que era comum quando se sentia irritado –
A senhora tem um amante?
- Quase nunca, padre...
- Quase nunca, o quê?
- Quase nunca tenho tempo para ele. Só mesmo quando o meu querido e
amado marido faz alguma viagem e vai demorar mais dias. Convido-o para passar
uns dias comigo. É que não sei dormir sozinha, padre. Preciso de um homem na
minha cama, mesmo que não brinquemos. Mas com o meu amigo nós brincamos até às
três horas da manhã. No outro dia, apesar de dormirmos, ele caminha tremendo as
pernas, o que é bastante hilário. Vai para casa de táxi, e só sai no outro dia,
quando as pernas param de tremer.
- E quanto tempo tem que a senhora brinca com o seu amante, quando seu
marido viaja?
- Desde antes do casamento. Mas o meu marido nunca soube disso. Nem
mesmo desconfiou.
- E quanto tempo tem que a senhora não se confessa?
- Desde o meu casamento. Confessei para casar e comunguei no casamento.
Não mais. Se o marido nunca desconfiou, ninguém sabe disso, ninguém desconfia,
isso não é um pecado, é?
- Isso é adultério. A senhora não respeita o seu marido.
- Quantos orações devo rezar para que Deus me perdoe por brincar com meu
amante? Mas padre eu só brinco com o meu amigo, nada há de mais sério.
O padre esteve quase por escorraçar aquela senhora de seu
confessionário, estava sendo muito cínica com ele, se não respeitava o marido,
isso era com ela, mas lhe faltar o respeito não aceitava, era um representante
de Deus na terra, estava confessando os fiéis. Não o fez.
- Não terá de rezar qualquer oração, minha senhora.
- Graças a Deus. Ainda tenho de chegar a casa e fazer a janta para o meu
marido.
- Senhora, aconselho a senhora a procurar outro padre para lhe
confessar.
- Já me confessei, padre.
- A senhora é alguma imbecil, idiota? – perdeu as estribeiras.
- Não, senhor. Meu marido diz que sou muito inteligente, difícil
encontrar uma mulher tão inteligente quanto eu.
- Pois está parecendo.
- Estou absolvida de meus pecados?
- Não, não está não senhora. Peço-lhe que se retire de meu
confessionário. Procure outro padre.
Terezinha Ri-bés ficou vermelha de tanta vergonha, jamais pensara que
fosse algum dia ser expulsa de um confessionário, que padre mais ignorante. O
padre saíra do confessionário. Entrou na sacristia. Terezinha continuou
ajoelhada no confessionário, estava sem coragem de se levantar, ir-se embora.
Quê vergonha! Mas Deus era testemunha de que ela fora sincera na sua confissão.
Sentia-se mais tranqüila. Não iria dar para comungar no Domingo de Páscoa. Não
iria procurar outro padre. A resposta de todos seria a mesma. Continuaria indo
à missa, continuaria brincando com Paulino Dante, quando o marido viajasse. É
mesmo aquela coisa, isto ela sempre teve consigo, desde que se entendera como
gente: enquanto se descansa, carrega-se na pedra.
Manoel Ferreira Neto.
(28 de janeiro de 2016)
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