**ONDE A ÁGUA É SUAVE**
Quê posso mais além de buscar verbalizar sentimentos e emoções? Quê
posso mais além de ser-me, tecer as miríades de luzes com os horizontes de
cores do arco-íris? Quê posso mais além de escutar as sonoridades do in-audito?
Débil lembrança de momentos nunca abarcada pelos sentidos, de verdade só
memória, sem tempo, só a éresis do tempo. A longa desolação do mundo branco,
fechando os olhos, encolhendo-se todo, e sonhando a vida além da dor,
sofrimento, angústia, além da felicidade, além da alegria, silêncio-ser.
Realiza-se o prodígio de re-tornar a sentir-me um Ser que se faz
continuamente. Importa-me que tudo prossiga, prolongue, abandonar-me à
vertigem, seguir a Estrela Polar. Tudo seja atraído pelo mais íntimo desejo,
impulsionado por vocação profunda, tão simples como no pensamento, pela
Natureza, Alma, pelo Sonho e Espírito, pelo saber, pela volância da sabedoria..
Deixe-me esquecer de hoje até amanhã, aquando, com certeza, a chuvinha
continuará molhando a terra, as sementes estarão ansiosas por surgirem à luz
ensimesmada do dia, mas alegres por estarem crescendo, rumo ao fruto que
saciará a fome, a carência de amor e compaixão!...
Nascimento significa o genuíno, ingênuo, pureza, o desunir do todo,
aniquilação da doída e condoída individualidade, afastamento de Deus: re-tornar
ao todo, chegar a ser Ele. Buscar cristianizar a compreensão e entendimento de
Deus, ter ampliado a dimensão do espírito de tal modo que se mostre possível
voltar a conter de novo o TODO, re-colher, a-colher o in-audito,
Vida e morte são mesmo coisa engraçada. Têm a sua ironia, ah, se têm, e
se não tivessem não despertariam tanta risada entre o opúsculo e o crepúsculo,
entre o alvorecer e o entardecer. Têm o seu cinismo, oh, se têm, e se não
tivessem não causariam tanto sonho de integridade.Têm a seu sarcasmo, hum,
óbvio, e se a não a tivesse, não seria semente de questionamentos e buscas. Na
zona do sobressalto, atinjo não bem o que sou por dentro, o modo íntimo de
ser-me, a pessoa viva, a pessoa absoluta. Mas o quê?
Letras surgem e desaparecem na ansiedade da vigília, de poder estar a
sós, buscando descrever estes caminhos de pedra. Preocupo-me em estar
re-velando o que há de verdadeiro, nos sentimentos, emoções, para, aquando
tristeza e descontentamento, saber as pernas podem subir outros becos do
moinho, outras burgalhaus (a questão é indagar onde é que estão a areia, o
cascalho), mesmo que existam desde toda a eternidade, saber a resposta para os
questionamentos percucientes sobre vida e morte, que não me defendam ou
justifiquem, mas me identifiquem com sonhos aí sedentos de verdades.
Se isto não é estupidez, dissensão dos sentimentos, é peculiaridade da
alegria de viver, existir. Sinto-me comovido e, sobremaneira, condescendente;
refestelo-me inteiro como um cachorrinho diante de pouca ternura.
Quase toco este mistério, retenho-o, cuidadosamente, na concha das mãos
fáceis, rápidas de gestos, na retina dos olhos. É seguir o caminho até atingir
o Cruzeiro, no cume da serra, a Cruz solitária brilhando por todos estes anos,
à noite, e centenas de outros que não tive a oportunidade de presenciar. É
trilhar esta alameda: sou o mundo e o mundo é o meu “eu”, sou sendeiro de
outros caminhos E se houvesse presenciado, o que faria diferença? Pergunta
imbecil, aliás, qualquer questionamento que envolve o condicional “se”.
Este amor é travessia serena – quem pode ofertar estrelas ou fazer de si
mesmo oferenda?!...; quem pode doar a lua ou sentir-se iluminando o mundo à
noite?!... Sem ele, abominaria o verbo que se faz carne, e ainda que o resto do
caminho até o ocaso fosse inteiramente desfigurado, o cerne da vida é nobre,
tem feição e laia, gira em torno das estrelas, da lua cheia que se ostenta
vigorosa e vital.
O silêncio auscultativo da alma escuta o silêncio eloquente do espírito.
Andar na única alameda de luzes a refletirem no chão, que, antes, era de
terra, hoje, de pedras, que o desejo de reeleição construiu, na grama, nas
folhas de árvores, logo abaixo as águas sujas, e na fonte eram límpidas e
transparentes, seguem a trilha – a noite se estende como um sudário, murmurando
sílabas encerradas de revolta, rebeldia, palavras de sonhos e utopias – para a
imortalidade, mesmo que esta, às vezes, mostre apenas ilusão, fuga das
dissensões de sentimentos, fruto de farsas e falsidades, isto rejeito no mais
profundo do espírito.
Terei, sem dúvida, se o desejo de seguir o caminho de luzes, de
multiplicar as ambigüidades, complicar os mistérios da morte eterna, de se lhe
entregar inteiro ou de lhe abandonar vez por todas. Terei de recolher no
presente sonhos e ideais, de estender os braços em sintonia com as pernas,
buscando encontrar o torvelinho de inocências, ingenuidades; terei de re-colher
no futuro desejos abertos, utopias dilatadas, para chegar, quem sabe, a viver
todas as vidas, senti-las iluminando os recantos ensombrecidos.
A chuva, sendo precisa, não há solidão, medo, tédio, restando estar em
pé à janela, olhando os pingos que caem diante da luz de entre folhas de
árvore, lembrança de tempos idos, que estão indo, memória de prazeres, angústias
e medos. Sinto os ventos. Árvores continuam a florescer, dar inúmeros frutos, o
rio rola as águas continuamente, as estações do ano se unem e se afastam,
ligam-se, separam-se, os anos se sucedem rápidos, é só olhar para trás e ver
quando começou o novo milênio, século, década.
Talvez que, para este instante de pureza, só fosse própria e verossímil
a inocência de criança, que nunca se conhece senão depois de ser ingênua. Se
não fossem estas horas em que subo o caminho de luzes, à noite, por vezes, uma
chuva fina caindo sobre as pedras – preferiria estar pisando a terra ao invés
de pedras que o desejo de reeleição construiu, - esta coisa de dentro a calcar,
a dizer as de fora.
Beber nas fontes das serras, onde a água é suave. É preciso compreender
essa atitude predispõe para iluminações elevadas. Ao atingir o limite dessa
perspectiva sensível ao coração, percebo de um só golpe de vista o fugir das
colinas a respirarem juntas e, com ele, o canto da terra.
Manoel Ferreira Neto.
(27 de janeiro de 2016)
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