**À BEIRA DE UM RIO DE ÁGUAS LÍMPIDAS** - Manoel Ferreira
As águas agora mudam de feição, de aspecto. Límpidas e nítidas, era-se
possível ver-lhes o fundo, as pedrinhas redondas, as plantinhas, os peixes. Um
deleite agradável para os olhos, espírito, alma.
À beira do rio, olhando-as passarem lenta e tranqüilamente, os
sentimentos, ainda que inquietos, dispersos, sensibilizados por circunstâncias
de não, situações difíceis, tornavam-se com o decorrer do tempo, os mais
harmoniosos, os mais serenos e compassivos, e o espírito por inteiro refletia
uma imagem de resplendor, deliciando-se ao sol de verão com os seus raios
dourados, ao aspecto ensimesmado das manhãs de inverno, a neblina cobrindo as
montanhas.
De águas translúcidas, brilhantes como espelhos, se transformaram em
rostos. As águas parecem repletas de rostos, virados para os céus, rostos
implorando compaixão e misericórdia diante de tantos sofrimentos, tantas dores
incrustadas no peito, devido a dificuldades, a sonhos não realizados, aos
valores discriminados e rejeitados, aos sentimentos desrespeitados e
denegridos; rostos furiosos arquitetando vinganças as mais variadas possíveis
devido a sentimentos de revoltas por tantas arbitrariedades e gratuidades,
violências; rostos desesperados devido aos fracassos, desilusões, à perda das
esperanças de realizações, de sobrevivência, de amor ao próximo, de compaixão
pelas muitas faltas e erros cometidos, solidariedade pelas condutas, posturas,
posições; rostos surgidos das profundezas aos milhares, por gerações, por
séculos.
Não há nada que se possa ser esquecido pelo espírito. Se antes
contemplava as águas, sentindo-se calmo, harmônico, em paz com a natureza,
agora nestas mesmas águas presenciar à aparição de rostos através de várias
manifestações, revelando sem qualquer medo, sem qualquer censura os inúmeros
estados negativos, isto jamais pode ser esquecido pelo espírito.
Milhares de situações podem se interpor, e com certeza cobrirão como um
véu a consciência presente das inscrições secretas da mente. Situações do mesmo
tipo, com as mesmas características, poderão fazer com que esse véu se
descubra, mas de qualquer forma, veladas ou não, as inscrições permanecem para
sempre, as novas imagens estarão inscritas, exatamente como as estrelas que
parecem sumir com a luz do dia, com a luz da noite, velaram o ossuário da
terra, quando na verdade estão cobertas pelo véu da claridade, e apenas esperam
o fim do dia para se revelarem inteiras.
Para mim, o silêncio de uma manhã, à beira de um rio de águas límpidas é
nítido, é mais tocante do que todos os outros silêncios, porque as imagens das
nuvens refletidas nas águas influenciam nos estados de espírito, tornando-lhe
sereno e contemplativo; a paz da natureza e das inocentes criaturas parece
assegurada e profunda, apenas enquanto a presença do homem e seu espírito
inquieto não vierem desequilibrar essa santidade.
Verdade seja dita, eu que à beira de um rio de águas límpidas sinto-me
feito para o amor e as afeições gentis, agora com todos estes rostos se
manifestando, mostrando claramente seus sofrimentos e dores os mais atrozes,
sinto haver perdido minha alegria e paz de espírito: sinto, por ser um homem
apaixonadamente dedicado a propósitos espirituais e intelectuais, que não
poderei deixar de aproveitar diversas horas felizes em meio a este quadro tão
desolador que são os rostos sofridos à superfície das águas.
A simples essência humana, essa de as esperanças serem as últimas que
morrem, após a tempestade vem a bonança, na sua mais humilde e caseira
vestimenta é suficiente para mim e eu amo a humanidade porque ela é minha
companheira de silêncios, de desejos, de sonhos.
As águas límpidas de um rio que dou o nome de sagrado são feitas com
cada água que passa num momento, num lugar, com as águas todas que passam
neles. Sagrado são todas as coisas que estão vitalmente ligadas à vida, aos
sonhos, ao amor, à compaixão. Pensar as águas límpidas de um rio como sendo
sagradas é abrir as mesmas para o pensamento, para a contemplação, frágeis
diante de um mundo imenso, de um universo imenso, de uma eternidade sem
limites.
Águas límpidas que dão razões para viver, para buscar a Vida e não
somente o sentido d´Ela são aquelas águas que fazem parte do itinerário do rio
que corre em direção ao mar, ao oceano. São as águas límpidas que dão felicidade
aos olhos, ao espírito, à alma.
Diante do cenário, da paisagem de um rio que as águas límpidas abrem à
contemplação, à proximidade do nada, a presença do nada que é o objetivo da
contemplação, os olhos abrem-se no brilho do Infinito e da Transcendência.
Manoel Ferreira Neto.
(23 de janeiro de 2016)
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