**OUTONO DE MIM** - PINTURA: Graça Fontis/PROSA: Manoel Ferreira Neto
Escrever...
As manhãs de outono são mais frescas. Quem sabe seja título interessante
"Outono de Mim". O amor incondicional é pelo inverno: vira-me pelo
avesso, sou pura sensibilidade. Sinto-me escrevendo, sinto aquela algazarra das
palavras na alma, aquele olharzinho de ciúme entre elas: "Eu que deveria
ser escrita primeiro. Não você", isto sem contar o fato de a iluminação
ser apenas coadjuvante, não sei dizer o que vai além da iluminação, sinto-a, as
idéias fluem leves; enquanto escrevo, assobio, canto. Alguma dimensão
trans-cendental de mim. Clarice Lispector disse que as palavras são a quarta
dimensão dela. Escrever no inverno é a minha quinta dimensão trans-cendental.
Assim que disse o titulo interessante seria "Outono de Mim"
senti um arzinho de traição, trairia o inverno, ou melhor, o meu amor
incondicional por ele. Decidi, então, tecer breve consideração sobre como me
sinto escrevendo no inverno. A porta para entrar no "outono" seria
esta consideração.
O tiro saiu pela culatra. A manhã fresca de início de outono
esvaeceu-se, embora a frescura continue, fazendo-me sentir bem. Iria dizer da
frescura. Esvaeceu-se. Em verdade, em verdade, fiquei sem estações climáticas,
nem outono, nem inverno.
Deveria não ter considerado o amor incondicional pelo inverno, esquecido
disso de "traição", escrito o Outono de Mim. Ou deixado a
consideração sobre o inverno para o final, alfim o inverno vem depois do
outono.
Agora é con-viver com este sentimento de não ter escrito sobre a
frescura da manhã de outono, como estou a sentir-me. Fazer o quê se o inverno e
o outono esvaeceram-se em mim?
Que loucura é esta? Surgiu-se-me que no próximo outono, ano que vem,
portanto, estarei bem longe, noutras situações e circunstâncias, tudo isso será
passado.
Tive uma idéia - não sei se supimpa! Terminar este escrito, depois de
tomar um banho n´água fria. A água fria restabelece todas as energias
sensíveis, emocionais, sentimentais, psíquicas.
Deem-me licença, leitor. Vou tomar o banho gelado matutino. Volto logo.
Manhã fresca de outono. Banho matutino gelado. Amo de paixão o inverno,
mas odeio água gelada. Orientação médica: estou envelhecendo, a água quente
exerce péssima influência na pele, as rugas aumentam. Faço este sacrifício em
nome de minha pele lisinha. As vaidades custam muito caras. Este preço de tomar
banho nágua fria estou pagando. Que outro preço não esteja pagando? Isso sem
contar que nada há para evitar envelhecimento da pele. Faltam-me desodorante,
pasta dentifrícia. "Muxibento" não - pelo amor de Deus! Dizem as "gatinhas"
que estou muito enxuto pela minha idade, quero conservar isto; ser objeto de
admiração das "gatas". Tudo vale nestes instantes da vida, até as
futilidades, frivolidades. Conservar o corpo pelo menos; a alma... não tem mais
lugar nela para tantos problemas em todos os níveis.
O inverno está próximo. Vou me sentir bem, maravilhosamente bem. O
outono de mim é só esta frescura das manhãs, os banhos n´agua gelada. Vou-me
prolongando, prosseguindo, até não sei quando. Virão o in-verno, a primavera, o
verão, sucessivamente.
(**RIO DE JANEIRO**, 22 DE MARÇO DE 2017)
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