**HÁ SEMPRE DESVIOS E AUSÊNCIAS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
"... por que não deixar os ventos da colina sibilarem, enquanto o
lobo no pico uiva ao universo e a todos os horizontes..." (Manoel Ferreira
Neto)
Disseram-me sou demasiado ingênuo, o que de antemão concordei, endossei,
cachaprei as digitais no tangente a alguns níveis da vida, da sobrevivência e
da posição social, isto dizendo respeito a como lidar e tornar realidade as
atitudes e ações de modo a satisfazer, en-cantar alguém.
Jamais me fora dado estratégias para a obtenção destes louros e louvores
que muitos sonham em alcançar. Por longo e inolvidável tempo pus-me investigar,
avaliar tais estratégias, tendo-me sido empresa de grande fôlego, mas aprendi-as
com distinção, não há noção do quanto por mim atingido fora, um tesouro
inestimável.
E se esta ingenuidade, que a ponto e natureza me toma por inteiro,
trago-a dentro em mim, por motivos e inspirações das quimeras, ser através
destas últimas, vale enfatizar por ser possível, em princípio, pensar e intuir
as inspirações em caráter primevo; são as quimeras, aliás, a partir delas, que
começo a conceber o que é possível de ser realizado, antes mesmo de sonhos e
utopias. O sentido e significado delas, se visto em nível do preconceito,
discriminação, são mais pujantes que sonhos e utopias, estes são dimensões da
realidade.
Pensando no sentido dicionarizado de “beócio”, que traz em si mesmo uma
carga negativa, figurado, obviamente, apresentado por Aurélio Buarque de
Hollanda: “Fig. Curto de inteligência; ignorante, boçal”, o que fundamenta
serem as quimeras boçais. Se vistas de outro ângulo, sendo a origem das
quimeras, o que é boçal passar pela via do irrealizável, alcançando o nível de
origem, e nesta a semente do realizável e do possível de ser realizado.
Dizem sou ingênuo, não aprendi a explorar as capacidades e dons da vida
no sentido de “ganhar dinheiro”. E não está ligado a “arte”, que desde toda a
eternidade não dera a ninguém prestígio de grana.
Se é que seja mesmo ingênuo, não me é dado res-ponder a este
questionamento, mas de algo estou, digamos, consciente, o sonho é de tornar o
verbo, que, para mim, são as palavras, em carne. Creio seja esta a
característica principal, embora, se o for, vejo isto ainda ingenuamente, não
sei tudo o que se esconde atrás disto, eu que sei e conheço a natureza amar
ocultar-se e revelar-se.
Quem sabe até, ao invés de “beócio”, o termo adequado fosse outro,
“óbito de quimeras”, quando não são ingenuidades, mas, sim, a morte delas, e
quando realmente começam as utopias e sonhos? Seria, então, o atestado de
óbito, prescrito por um médico, a causa mortis das quimeras, o início dos
sonhos e utopias, estes que são os do verbo amar.
Desejava falar um pouco desta ingenuidade a mim atribuída por outros, o
que endosso com todas as letras, aproveitando poucochinho das palavras de ser
quem fala sobre elas, noutro estilo e linguagem, que lega a elas o privilégio
de se revelarem, não serem apenas representações, se é que não estou enganado
quanto a esta profundidade, existindo outra que não tenho consciência, o tempo
irá mostrá-la e identificá-la.
Mas não. Aproveito que as idéias não estão transparentes, não conheço o
rumo que as letras estão seguindo, os caminhos do campo por onde andam, as
estratégias e desvios necessários, para dizer não ser sobre o óbito a que me
refiro, mas um testamento: a menos que não esteja em sã consciência, as
faculdades do bom senso estão presentes e vivas, um morto não escreve o seu
óbito senão na obra póstuma de Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás
Cubas. O póstumo é apenas uma metáfora: esta obra concretizara os dons do
autor, tornando-o imortal e eterno. Aliás, algo que deve ser consertado: toda a
sua obra é imortal e eterna. Não se é possível avaliar qual não seja
obra-prima, todas são, umas dentro de algumas características, outras incluindo
e superando, atingindo outras.
Sobre nada desejo falar. Gasto as palavras arbitrariamente, à toa, para
usar um termo adequado à situação de não estar interessado em revelar coisa
alguma, de tornar as palavras o verbo de algum sonho latente ou manifestado,
despertando os homens para a sua busca de realização, de usufruírem do
privilégio do reconhecimento e da imortalidade.
Aliás, eternidade, imortalidade, desde sempre são temas e temáticas
desenvolvidas por toda a eternidade, adjetivos. Desejo apenas, uma tentativa,
quem sabe vã, desde os princípios da língua portuguesa, de transformar o
adjetivo “beócio” em um substantivo pujante, uma ponta de faca que destrinça a
carne, tira o osso dela, mostre-lhe transparente e claro, apesar de algumas
manchas de carne aqui e ali, enfim, a perfeição radical não existe, há sempre
desvios e ausências.
Se vos digo com delicadeza de linguagem, finesse cordial, tome isto como
uma fala sem quaisquer intenções escusas, a pureza do que penso e sinto, jamais
o adjetivo "beócio" irá se transformar em substantivo, dir-me-á sou
ingênuo, não havendo o que nem quem possa persuadir-vos não sê-lo, e por ser
tão ingênuo o adjetivo que me cabe com perfeição é "beócio". Só vos
digo com toda a simplicidade pouco isto desta transformação me diz respeito,
estou-me nas tintas ser julgado e tachado "beócio" por ser ingênuo,
porque desde tempos imemoriais em mim trago dentro que alguém ingênuo jamais
pode ser beócio porque não é curto de inteligência, sua inteligência é
muitíssimo avançada pois que exerce a falta, ausência, falha de senso com todo
primor, se é que me possa fazer entendido. Cá venhamos, perdoai-me vós o
cacófato, sendo eu de uma boçalidade sem quaisquer freios no dente e a corrida
á toa, como posso imaginar a ingenuidade, a pureza que lhe habita, isto é uma
dimensão transcendental, espiritual, boçal algum é capaz disso, e vós estais
intuindo, percebendo, verbalizando, sentindo nos cafundós de vossa alma que
tais palavras vos dirijo estão alicerçadas no que dentro em mim há, há centenas
de ingenuidades nesta missiva que vos dirijo, por que não deixar os ventos da
colina sibilarem, enquanto o lobo no pico uiva ao universo e a todos os horizontes?
Estive urubuservando e ulucubrando as vossas posturas e condutas, as
suas falas ao se referir a mim, e chego à conclusão de haver outro motivo,
razão, se assim vos convier, de tachar-me beócio, não é por ser ingênuo. Se
tenho alguma idéia do que seja, o porquê de me tachardes beócio. Pensais não
houvesse uma, teria a ousadia, pachorra de aventá-la. Esperava apenas que me
fizesseis a pergunta. Sem delongas desnecessárias, só vos pergunto se tendes
alguma noção de "neurose de transferência." Sugiro-vos que procureis
o psicanalista Lacan para vos inteirar do sentido de "neurose de
transferência". Se não, procurai informar-vos com bastante esmero e
acuidade, podereis então saber e compreender as nossas diferenças incontestes.
(**RIO DE JANEIRO**, 31 DE MARÇO DE 2017)
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