**TOMANDO O FREIO ENTRE OS DENTES E CORRENDO AO ACASO** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Começasse de imediato com o questionamento que me surgira, depois de
ouvir uma con-versa na fila do caixa da padaria, envolvendo o pato, a ave. Há
um outro sentido dado pelo vulgo: pato é aquele que só leva prejuízo em todos
os níveis, o que sempre leva, e mais ainda em situações ingênuas. Não era só a
este a que se referiam Krepp e Tinoco, dois velhinhos especialistas nos
assuntos novos do dia. Dar-lhes qualquer atenção, até diante de um jegue
sente-se culpado, responsável, à palavra nada poderia contestar, fazer jus:
cretino.
A não-conformidade com o modelo de fala que Krepp e Tinoco assinalam,
vis-à-vis e vice-versa, o que lhes é hostil e lhes resiste. Em termos de
haverem sido professores de grande conhecimento, isto é indubitável, mas na
velhice outra coisa não fazem senão falarem a respeito dos assuntos dos dias,
alguns até com pormenores; negam, dissimulam, tapam os ouvidos, desviam os
olhos, são negativos até em seus ódios e em suas hostilidades. Nada mais odeiam
que como àqueles que os tratam como Krepp e Tinoco, com olhares em todas as
perspectivas cínicos, sarcásticos, irônicos, e lhes dizem o que são: o
obstáculo, a parede, a amurada de todos os espíritos vigorosos e criadores, o
pântano de todos os esgotados, a barreira de todos aqueles que se lançam para
objetivos superiores.
Nem sempre a linguagem da velhice, chamam-na de caduca, é a fraqueza das
idéias que os leva a des-considerarem a veracidade dos fatos e das
circunstâncias, mas a força da imaginação, da criatividade, muitas coisas são
ditas nas entrelinhas dos "causos alheios", a sede de beleza que
atinge.
Todo este lero-lero a respeito de Krepp e Tinoco, ex-professores, muito
idosos, e no tangente ao "pato" da conversa deles que me chamara
muitíssima atenção, pondo-me a re-fletir assunto aleatório, por que me admirara
tanto. Qual fora a pergunta que Krepp fizera a Tinoco, qual fora a resposta que
este dera àquele?
Só não deixando a lebre não ser aventada, Krepp e Tinoco não se
preocuparão em saber o que as naturezas de pato consideram como verdade e o que
o espírito "elaborou, delineou num estado de semi-sono" sobre coisas
que somente pode julgar aquele que já teve conhecimento direto.
Na verdade, na verdade, a pergunta feita trata-se de um adágio
"pagar o pato", quem não tem nada a ver com as coisas é quem acaba
sendo o culpado,o responsável e "o pato fala baixo". Krepp perguntou
a Tinoco: "Tinoco, por que o pato fala baixo?" Segurou bem no cabo da
bengala que estava encostada no balcão, dera uma tragadinha no cigarro, olhou
ao redor como quem estivesse refletindo e meditando, mas fazia muito que estava
na ponta de sua língua. "Está querendo me pegar Kre, mas quando você chega
com o fubá, meu angu está pronto. Esperava que lhe respondesse por ele andar de
cabeça baixa. Nada disso. Ele fala baixo sim, é o seu único momento de
lamuriar, reclamar por não ter pegado peixes maiores, contentou-se com os
menores, desciam melhor na garganta".
Alguns clientes riram deles, acharam risível, fala própria de dois
gagás, mas não chegaram a ouvir com que fala ele termina, ouvi-a por estar
atrás deles na fila do caixa da padaria. Dissera Tinoco mais baixo:
"Krepp, é preciso ser desprovido de bom senso para não captar que o pato
paga sempre devido ao fato de ele andar de cabeça baixa."
Engraçado é que,em princípio, Tinoco diz não ser tolo, a resposta
esperada é um despautério, um disparate. A verdade era outra bem diferente.
Di-la de modo sarcástico, pois imaginou o pato lamuriando, reclamando de seus
peixes haverem sido sempre pequenos, além de falar baixo, pensava pequeno, só
para realizar o trivial, só para a sobrevivência.
Quer mais sinceridade e calor que esta sóbria frase diz nas suas
entrelinhas, "... o pato paga sempre devido ao fato de ele andar de cabeça
baixa..." O fato de levar a culpa, responsabilidade das coisas, e não
res-ponder, significa que con-sentiu, aceitou, admitiu diante de quem era o
responsável, diante de todos, e consigo reclamava, lamuriava por ser solícito.
Prosseguindo o caminho, voltando para casa, após comprar manteiga e
presunto, daquele jeitinho que só o carioca pode mostrar e bem, pensei com os
meus botões: "O pato, andando de cabeça baixa, lamenta por não responder
às coisas que acabam sendo de sua responsabilidade, mas lhe diria para lamentar
sempre. Eu que não sou pato, seja em que sentido for, vivo lamentando o homem
extraordinário por ter vivido num tempo tão desprezível, inconcebível,
ridículo, insustentável que se viu forçado a polemizar sem trégua, a destilar
os ácidos críticos sem dó nem piedade, a descascar os pepinos sem pejo, a
descascar as manjocas sem escrúpulos, a depenar os frangos."
Ardentes e sinceras palavras com apenas uma brincadeira de expressões de
regiões diferentes de Minas Gerais. Tão ardentes e sinceras que seria
efetivamente estar desprovido de bom senso para não compreender a quem essas
deferências estavam realmente sendo dirigidas.
Sempre há o que pensar sobre as falas de Krepp e Tinoco. Quem estava
pagando o pato? Por que estava pagando o pato? Se não era só sobre "pagar
o pato" e "pato fala baixo", sobre o que estavam dizendo? Em
verdade, em verdade, teceram em linguagem ambígua e dúbia a situação: quem era
o pato, a personalidade e o caráter do verdadeiro responsável. O pato carrega
seu fardo com facilidade, embora as lamúrias e reclamações, enquanto o outro
sob o olhar das pessoas desmorona inteiro. Referiam-se em verdade a um caso de
estupro, um estava sendo acusado, enquanto que o ouro havia sim praticado o ato
Não vou dizer a pessoa, a quem era dirigida a fala dos velhinhos, era o
pato, estava sentada no caixa, era o proprietário da padaria. A culpa no
cartório era nada menos que o seu irmão.
Seria que as indiretas houvessem de ser sempre dúbias e ambíguas? São
para os espíritos perspicazes, só eles desvendam os mistérios.
(**RIO DE JANEIRO**, 30 DE MARÇO DE 2017)
Comentários
Postar um comentário