**À ESPREITA DAS LINGUAS AFIADAS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Bons dias!
Calífero Lúcio lambe-se todo de contente,
saltitante, só com a idéia de um pandemônio. Às onze e meia da manhã vai ele
para a porta da Câmara Municipal, com biscoitos no bolso e paciência no
coração. A paciência, pedindo a devida licença a todos da palavra, é um
biscoito moral, dado a muito poucos pelo céu, aos escolhidos a dedo por Deus.
Calífero Lúcio é desses poucos. É capaz de agüentar um temporal, uma soalheira,
uma carga de cavalaria, sem arredar um passo da porta da Câmara, até que lha
abram. Abrem-lha, ele entra, sobe a rampa, os degraus da escada em espiral,
arranja um bom lugar, e lá fica até que termine o expediente. Só escutando as
conversas, os bate-bocas dos parlamentares, as fofocas dos funcionários, os
qüiproquós. Não troca palavra sequer com as pessoas que esperam ser atendidas,
pelos funcionários que andam para lá e para cá, não aceita nem um gole de café
que lhe ofereçam as copeiras, com a cabeça responde aos cumprimentos dos
vereadores, só se levanta do banco para tomar água no bebedouro, ir ao
banheiro. Não incomoda ninguém. Sua especialidade é saber de tudo o que lá
acontece. Espera o pandemônio que a qualquer hora há de surgir, ou ele mesmo o
cria, dizendo aos conhecidos e amigos nas esquinas e bares da cidade, coloca
todos a par de tudo o que acontece.
Nunca me fora dado entender como todos aceitavam a
presença de Calífero Lúcio no banco do saguão de recepção entra dia e sai dia,
por meses, ninguém se importava, era tido e havido como louco de pedra, louco
manso, apesar de loucura não ter nenhuma, lúcido e sóbrio até além da conta.
Qualquer repartição pública tomaria medidas para a sua retirada, embora chamar
a polícia num órgão do governo despertar atenções di-versas, chamá-la-ia
necessário fosse. Era uma espécie de folk-lore do métier político. Observava
tudo, ouvia tudo, assimilava tudo, e todos ficavam sabendo das notícias em
primeira mão.
Por alguns meses, sempre às quartas, quintas e
sextas primeiras, freqüentei a Câmara. Alighieri pediu-me corrigisse alguns de
suas redações para publicação no jornal, algumas correspondências, entregar
alguns envelopes com certas quantias ao asilo dos velhinhos, às comunidades de
bairro. Chegava, cumprimentava a todos, desejava-lhes bom trabalho, sucessos,
enfiava-me no gabinete, saía para ir embora. Claro, observava com percuciência
o comportamento e falas dos funcionários, a cara dos vereadores, de alegria,
sorriso de orelha a orelha, raiva, ódio, preocupação. Não era de meu interesse
sair comentando, eles que se entendessem, se não, o diabo que o fizesse por
todos eles. Odeio fofocas. Comecei a incomodar, não respondiam aos meus cumprimentos,
olhavam-me de banda, fuzilavam-me com os olhos, resfolegavam com a minha
passagem, só não me dirigiam indiretas, a resposta seria na lata, sem dó nem
piedade. Com efeito, sabiam de minhas críticas ácidas latentes. Alighieri
explicou-me não mais necessitar de meus serviços na Câmara, o presidente estava
colocando ordem na casa, não era eu funcionário, não era eu secretário,
contratasse outra secretária se a dele era incompetente. Mas nos mesmos dias do
mês fosse à sua casa, executaria o mesmo trabalho.
Algumas vezes cumprimentei Calífero Lúcio, que me
respondeu aos sussurros, coisa que não fazia com seu ninguém, sentei-me ao
banco, troquei poucas palavras com ele. Não foi isto que incomodou os
parlamentares, dar-lhe atenção.
Certa vez, o vereador Isério Dantas dissera que se
as mulheres sem o quê para fazer em suas casas fossem pedir-lhe para pagar
contas de água, luz, aviar receitas, dar-lhes-ia veneno. Fossem capinar
quintal, lavar e passar roupa, vender pirulito pelas ruas, até mesmo se
prostituírem, mas não daria mais um tostão a ninguém. Calífero Lúcio ouviu e
deu o recado pelo bairro a fora. Os maridos quiseram linchar o vereador Isério
Dantas. Só ia à Câmara acompanhado de dois guarda-costas, um batedor à frente,
um defensor nas costas. Passou o perigo. Mas se as madames iam pedir-lhe
contribuição para as festas e almoços de bairro, tirava quantia bem gorda.
Ninguém, mas ninguém mesmo, dissera um “a” ao Calífero Lúcio, não o censurara,
talvez por só dizer o que ouvia, não inventava, não mentia, de tão boa a sua
memória passava tudo ipsis litteris. Qualquer reação contra ele chamaria a
atenção da comunidade, estaria ainda mais nas línguas afiadas.
Pandemônio era a felicidade suprema de Calífero
Lúcio, e como político não se sente merecedor do cargo que ocupa se não estiver
envolvido com polêmicas e pandemônios, corrupção, nosso personagem fazia-lhes
um favor. Até mais do que os tablóides, os diretores só pensam no lucro que vão
embolsar com a publicação dos achaques e mazelas dos políticos. Calífero Lúcio
não ganhava dinheiro, ganhava sucesso como porta-voz.
Não atribuam, leitores, ao Calífero Lúcio nenhuma
preocupação política, disto ele nada entende, pequena ou grande, nenhum amor ao
Serafim ou a Alighieri, ao projeto de um ou de outro, nem à grande questão que
se debate agora mesmo em todos os espíritos. Não senhor; Calífero Lúcio é um
distintíssimo curioso, na política e na imprensa. Contanto que haja polêmica,
barulho, pandemônio, dá o resto de graça, a troco de leite de pato.
Justamente o dia de hoje, segunda-feira, dia de
plenário, cheira a chamusco, debate grosso, veemência, chuva de apartes,
tempestade de impropérios, tímpanos, confusão.
Na imaginação dele, não conheço outra mais fértil
que a dele, quiçá os homens de letras a tivessem a todo instante que desejam
registrar algumas palavras na folha branca de papel, a coisa há de se passar
assim. Será o dia de votação dos projetos dos novos vereadores eleitos na
última eleição, fato que na vida de meu caríssimo amigo equivale a um batizado
de criança na vida de todos os pais. Apresentação de projetos é fato dos mais
egrégios, supimpas, supremos na vida da política e da comunidade que costuma
estar presente em grande número de pessoas.
Os primeiros minutos do plenário são de ânsia e
curiosidade, - votações distraídas, arengas curtas, todos querem ouvir os
discursos empolados do presidente e dos veteranos que recebem as novas idéias e
ideologias dos novos colegas, verão todos como andam os interesses e objetivos,
a inteligência e as capacidades, se farão uma ótima gestão, se como eles mesmos
só ocupam a cadeira, conversam fiado com os visitantes ou pelo telefone com os
amigos e cúmplices. Quinze minutos depois, anuncia-se os discursos, oratórias,
que aparecem rompendo a custo as expectativas dos curiosos, tudo é esclarecido,
tudo é perfeitamente explico, o preto e o branco se comungam, e quando a tinta
de um ou de outro excede vênias são pedidas, falta, compensa-se com apartes do
pincel. Grande burburinho, crescente ansiedade. Reúnem-se todos para a votação
dos projetos, explica-se a crise, e o presidente Pádua Gustavo tem a palavra
para expor suas alegrias e saltitâncias com os resultados promissores que o
projeto legará à comunidade. O profundo silêncio com que ele há de ser ouvido é
um dos regalos de Lúcio, que ouve através do silêncio os qüiproquós e tumulto
das almas.
Depois rompe um vereador. Qual vereador? Não sabe
qual seja, que graça é a sua, se uma melodia aos ouvidos, se um coice no bom
gosto – não é um coice de mula nele? Há de ser um, provavelmente o Amparo, ou
algum com quem se não conta, e está acesa a lareira – brotam os apartes,
desabrocham as emendas, nascem as cláusulas, revelam-se as erratas, agitam os
ânimos, vem outro orador, mais outro – cruzam-se os remoques, surgem os punhos cerrados,
os olhos faiscantes de raiva e ódio, bufam as cóleras, retinem os entusiasmos e
empolações. E o nosso Calífero Lúcio, de sua cadeira, no canto da parede, goza
uma boa tarde de plenário, um dia raro, como o dia em que todos os brasileiros
sentiram-se aliviados com o impeachment de Fernando Collor de Melo. Calífero
Lúcio lembra-se que fez um prato todo especial para o seu cão de estimação,
jantaram juntos, comemoraram o fim da corrupção.
Agora que a questão é ainda mais grave, o vereador
Darceno Dias apresenta o projeto de lei contra o plágio, a sessão há de render
mais, enfim e acultura e as artes voltam à Idade da Pedra Lascada – ou dar
sorte, que é a locução do meu amigo Calífero Lúcio, dar sorte porque promete
acabar de vez com os oportunistas da imortalidade, abrir oportunidades para os
verdadeiros artistas.
Calífero Lúcio espera sair da sessão plenária
abarrotado, entupigaitado de comoção por nove meses. Jura a quem quer ouvir que
não tem preferências, pouco se lhe dá nas tintas se os plágios continuarem, se
a verdade cultura e as artes se revelará e em pouco tempo a comunidade
conhecerá a Grécia de nossa modernidade. Também não quer saber se do debate
sairão penalidades pessoais ou pecuniárias aos oportunistas, aos plagiadores,
aos farsantes. Contanto que haja tumulto, polêmica está ganho o dia, e o dia
seguinte pertence ao Artífice do Universo.
Ide vê-lo, caríssimo leitor, à saída da Câmara
Municipal, olhando embasbacado para as coisas da vida e da realidade; estará
ainda alegre e saltitante. Amanhã, que Ferluci diz que também é dele, vereis o
meu pobre amigo Calífero Lúcio arrimado a alguma porta de esquina, à espreita
de algum vereador desconsolado com a vida como na Ópera do silêncio do escritor
Manoel Ferreira:
Sou um homem desequilibrado,
Sou um homem-desequilíbrio.
(**RIO DE JANEIRO**, 17 DE MARÇO DE 2017)
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