**À SOLEIRA DE UM RIO SEM MARGENS** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
De fato, todo aquele que pensa como pensa a si próprio e ao mundo, à
terra em que habita e existe suas contingências, visão-de-mundo,
visão-da-existência, há de confessar pública e notoriamente que andou por algum
tempo ou por longo nas calçadas ensombrecidas, nos terrenos baldios, nos becos,
vendou os próprios olhos, tapou os próprios ouvidos. Se há quem diga "Não
é assim não. A coisa não se dá desta forma?", só tenho a dizer-lhe assim
tão simples que para a consciência estar presente, ser efetiva, éritos e érisis
pretéritos foram vividos, vivenciados, experimentados com todo fervor.
Andar à soleira de um rio sem margens é ainda muito mais vergonhoso que
nas calças ensombrecidas, terrenos baldios, becos, pois que se imagina nada ser
no mundo, não trazer em si dentro quaisquer valores dignos de re-conhecimento,
e sempre atribuindo, conferindo ao outro suprema inteligência, divina
sensibilidade, outro que não só vê e enxerga as margens do rio, trilha-a
satisfeito e imbuído de todos os orgulhos e vaidades, inda sendo capaz de criar
a terceira margem deste rio, acreditando ser ele próprio filho das musas e
homem de cultura mais que elevada, trans-cendental em todos os níveis que for
possível conceber.
Andando à soleira deste rio sem margens, em companhia do outro a quem
atribuía todos os méritos, louvores, sorrisos na face, brilhos nos olhos por
sentir-se ele firmemente convicto de que sua "cultura", sua
"intelectualidade" era a expressão plena e completa do autêntico
conhecimento da vida, das artes, da existência, das religiões, das ciências e,
visto que ombreava e encontrava em toda parte pessoas instruídas de sua
espécie, laia e estirpe, evoluía com o sentimento vitorioso de ser o digno
re-presentante da uni-versalidade do conhecimento e formulava, como tal, suas
exigências e pretensões, suas reivindicações e intenções. Para que direção
seguisse, logo participava de uma convenção tácita sobre uma multidão de
assuntos, de idéias artísticas, filosóficas, religiosas, notadamente no domínio
da religião e da arte. Este "tutti unisono" espontâneo, extrovertido
o induzia a julgar-se diante da uni-versalidade, diante do conhecimento
uni-versal
O mundo foi girando, rodando na sola de meus sapatos já bastante gastos
de tanto trilhar a soleira do rio sem margens, quase mesmo furados, julgando-me
zero à esquerda, zero obtuso.
Num determinado sítio de nossas andanças, percebendo o obstáculo de
todos os espíritos vigorosos e criadores, o labirinto de todos os incertos e os
desgarrados, o nevoeiro deletério em que se asfixiam todos os germes vivos,
virei-me à esquerda, acenei-lhe a mão, não era um espírito acanhado e vulgar,
nalgum lugar outro senão aquela soleira do rio sem margens o verdadeiro
espírito, jamais julgar haver encontrado a verdade, a uni-versalidade do
conhecimento, das ciências e das artes.
Ainda sendo possível ver-lhe à distância, lembrou-me música que no
momento parafraseei:
E o filisteu seguiu seu caminho,
Nalgum porto do olimpo terrestre,
Os homens entre palmas eufóricas,
Cantando-lhe:
"O filisteu alfim chegou,
Estamos contentes e felizes,
Por que razão demorou tanto
Para nos ensinar todas as lições
Do espírito do conhecimento e da verdade."
Há tantos patetas disfarçados de intelectuais e poetas! E continuei as
minhas andanças pelas estradas de poeiras, possuindo as duas margens.
(**RIO DE JANEIRO**, 28 DE MARÇO DE 2017)
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