**JORNADA SILENCIOSA** - PINTURA: Graça Fontis/PROSA: Manoel Ferreira Neto
Sentir a vida correr por mim como fonte originária de um rio por seu
leito, e lá fora silêncio como um deus que dorme. Os rios são rios e as
montanhas são montanhas – meto-me para dentro, e fecho a janela. Os rios não
são rios e as montanhas não são montanhas – a voz contente balbucia o último
olhar amigo dado ao sossego das árvores, o último suspiro revelado ao final de
um cântico de esperanças e utopias. Os rios são rios e as montanhas são
montanhas – a mente não tem forma e tudo penetra, a água também não tem forma e
se adapta a qualquer espaço (por que não preencher os vazios de nossos
corações?). Com os olhos, vejo; com os ouvidos, ouço; com o nariz, sinto
odores; com a boca, argumento; com as mãos, seguro; com as pernas, caminho, com
o coração sinto os desejos de felicidade e amor.
A luz da lua incidindo de entre as folhas e galhos de árvores vigia no
coração secreto da noite, do olhar aprisionado entre os troncos roliços, vê no
gelo dos instantes as pequenas choupanas como vermes luzentes nas escarpas das
colinas.
Uma água límpida, parada, tão perfeitamente plana que nenhuma ruga,
nenhuma bolha de ar, turva a superfície. Nenhuma fonte, nenhuma origem. Está
aqui há milênios, represada pelas rochas, e se estende num único lençol
insensível e se torna, na sua garganta de pedra, a própria pedra negra, imóvel,
cativa do mundo mineral.
Sinais dos poderes obscuros em repouso nas profundezas, essas colorações
elétricas manifestam a vida latente e o temível poder desse elemento ainda
adormecido. A opacidade e consistência das águas límpidas fazem-nas como que
matéria desconhecida e carregada de fosforescências de que só afloram à
superfície fulgurações fugidias.
O sujeito estético dispensa-se do esforço
da configuração do que lhe surge
como contingente,
configuração que ele desespera
de suportar durante mais tempo;
imputa por assim dizer
ao contingente a responsabilidade da organização.
Onde as gavetas se abrirem de luto a casa se confunde com a morte num
espelho que se turva. Em cada lembrança transporto pedras do riacho para o alto
das paredes. Tudo o que faz os bosques, os rios ou o ar tem lugar entre as
paredes que crêem fechar um quarto.
Água jorra da fonte, caindo no solo, começando de seguir a sua jornada,
por terra, floresta, abrindo o seu destino contínuo em direção à sua
identificação e realização que é o mar, e daí continuando a sua meta em direção
aos continentes e ilhas. É preciso ir ao fundo de sua limpidez, sonhando,
guiado por um desdém das coisas velhas, diante do grande espetáculo dos
pequenos sentimentos que afloram dos abismos da alma, pequenos sentimentos no
tempo, grande vazio da eternidade.
Do fundo de meu canto, enquanto abro braços para a continuidade do
mergulho, durante as noites de inverno e abandonado, o infinito encontra lugar
em cada gota de água que segue a jornada silenciosa.
(**RIO DE JANEIRO**, 18 DE MARÇO DE 2017)
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