**LÁ NA VENDA, LÁ NA VENDINHA...** - PINTURA: Graça Fontis/SÁTIRA: Manoel Ferreira Neto
Epígrafe:
Ave Maria, cheia de graça... cheia de graça... Ave Maria, cheia de
graça...
Meus olhos fixos na lâmpada suspensa no teto do quarto, não piscam,
estão fixos... Em mim dentro, sentimentos e emoções ad-versos fluem, assisto ao
espetáculo sensível com respiração comedida.
Lua solidão. Estrela solidão.
Uni-verso silêncio. Horizonte silêncio.
In-finito vazio. Verbo vazio
"Você precisa de alguém?", ouço voz quase silenciosa diante de
seu sussurro perguntar-me. A voz penetra-me: afigurou-se-me a voz da sabedoria,
que só em instantes mui especiais se revela "Não preciso de ninguém....
Preciso de amor, não me serve qualquer amor." Se me perguntassem com que
voz respondi, em que tonalidade, diria com voz de carência acompanhada da
ausência de compreensão, não conhecia esta carência tão profunda; não
sussurrei, não murmurei, voz de quem está com amigos jantando num restaurante,
aquele diá-logo tranquilo, um "causo" no ar. Aprecio um causo. Armo
as minhas próprias armadilhas com ele. Viver é um perigo.
Feto, féretro... A claridade me fere os olhos, mãos cheias de dedos no
ar, os dedos movem-se como a digitarem letras... O abismo é fundo, muito fundo,
estou caindo... Por favor.... por favor... me socorram: caindo, estou caindo,
as mãos tremem... Meu Deus, meu Deus.... Estou caindo, o buraco é muito
fundo.... Quero o mundo, quero, quero o mundo... Por favor, tirem-me daqui,
tirem-me daqui...
Grito...
Lá na venda, lá na vendinha, é lá que tem aquele caderninho de linhas
pretas... Palavras sem nexos, nexos sem palavras... Meu Deus, me tire deste
lugar... Não quero sumir neste buraco sem fundo... Há uma neblina a cobrir os
objetos... Parece que o quarto está girando.... Mas o que é isto? Um cachorro
em disparada, rabo entre as pernas, corre e late, corre e late... a rua
deserta...
Ave Maria, cheia de graça... cheia de graça... Não sei rezar, as palavras
me faltam...
Por favor, me ajudem, peço que me ajudem... Mãe ouviu meu grito na
madrugada... Correu. Estava deitado no chão, olhos estatalados em direção da
janela que dormiu aberta... Com dificuldades me colocou na cama... Deitou minha
cabeça no colo... Começou a rezar.... Minha mãe já é falecida... Estou sozinho
no meu casebre. Vivo de mim, vivo sozinho...
Meu Deus, quero o mundo... Por favor, estou no vazio... Não me abandone,
por favor. Ave Maria cheia de graça, cheia de graça entre as mulheres... Não
sei rezar. O ventilador está ligado, não sinto o ventinho dele no corpo,
toco-me, os dedos tremem, nada sinto em mim... tudo me fugiu, tudo me foge...
Minha Mãe Santíssima me ajuda... Estou dentro do vazio, o mundo se esvaiu
inteiro...
Preciso escrever, não consigo me levantar da cama... se é que estou
deitado numa cama... Não sinto nada debaixo de mim... Preciso escrever...
É a minha salvação... Ave Maria, cheia de graça... Estou caindo num
buraco sem fundo, sem fundo, sem fundo, sem fundo...
Deixo-me a con-templar o meu cadáver sobre a cama, com simpatia e
carinho. Tudo me foi, fora morrido... mas a vida... seria que continuasse?
(**RIO DE JANEIRO**, 26 DE MARÇO DE 2017)
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